O medo e a guerra

Qual será a justificação que levou Putin a declarar guerra à Ucrânia? Manter a influência na região, revitalizar o império russo ou será um sentimento perene e muito humano – o medo?

Nas últimas semanas, o foco do mundo virou para a guerra na Ucrânia, e têm sido apresentadas várias justificações para o que levou Vladimir Putin a declarar guerra. Será o desejo de impedir a adesão da Ucrânia à NATO, e manter a influência na região ao fazer da Ucrânia exemplo? Será uma revitalização de um “império” russo, na base da unidade histórica (que Putin justifica num ensaio)? Ou será que algo mais primordial influencia esta tomada de decisão política, um sentimento perene e muito humano – o medo?

Enquanto estudante de Ciências Políticas e Relações Internacionais, a ler Tucídides, interessa-me uma distinção essencial, feita pelo antigo general ateniense, entre causas superficiais e profundas de guerra. No caso da Guerra do Peloponeso, na guerra entre as alianças espartana e ateniense, “o pretexto mais próximo da verdade e que não tem sido visível no que se tem dito é que o avanço a que os Atenienses tinham chegado lhes conferia muito poder, o que causou medo aos Lacedemónios [ler ‘espartanos’] e os obrigou a declarar guerra“. Isto é, muitos podem considerar que a causa de guerra, nesta situação, foi a expansão de poder Ateniense na Grécia, mas só esse fator não leva a guerra.

O que realmente leva à guerra é o medo que os espartanos sentem em relação a essa expansão de poder, a qual querem conter antes que percam a sua hegemonia no mundo grego, culminando numa declaração de guerra preventiva. Em termos mais simples, declararam guerra mediante o cálculo que a curto prazo não seriam capazes de conter a expansão ateniense. Daí, em Tucídides, notamos a influência que emoções têm em tomada de decisão.

O meu argumento é que as justificações para guerra previamente dadas não são completamente satisfatórias e que a distinção entre causas superficiais e profundas, apresentada por Tucídides, deve ser aplicada à decisão de Putin de declarar guerra.

A Ucrânia é um país geoestrategicamente muito importante, visto que serve como uma das portas europeias para o continente asiático. Para o Kremlin, perder a Ucrânia para o Ocidente significa ficar com a fronteira sul e oeste completamente desprotegida e significa ainda a perda do seu único porto de águas quentes viável – Sevastopol – que permite acesso ao Mediterrâneo e controla o Mar Negro. Portanto, a decisão de completar a invasão à Ucrânia, começada em 2014, desperta do medo sentido pelo autocrata – e pela elite política russa – de ver o controlo que o Kremlin tem sobre o país vizinho desvanecer com as aberturas que Kyiv tem feito ao Ocidente. Desta forma, o Kremlin, segundo uma avaliação temporal de ação, considerou melhor pôr fim ao namoro da Ucrânia com a NATO e com a UE antes que o mesmo fosse consumado. Portanto, Putin calculou, através do medo, que se não agisse agora de forma decisiva, dentro de poucos anos, a Ucrânia escaparia permanentemente ao controlo russo.

O medo sentido pela liderança política russa levou a uma menor aversão a correr riscos, a qual complementada com a necessidade de ação num curto espaço de tempo, resultou numa invasão mal concebida da Ucrânia: os objetivos da invasão, que esperavam ser atingidos num curto espaço de tempo e levasse o regime de Zelensky a capitular sem grande resistência, escapam-lhes ainda. Como sabemos, os objetivos temporais da “operação militar especial” russa não foram cumpridos e o exército russo vê-se agora a ter de operar em território hostil sem vitória em vista.

O paralelismo entre as guerras denota/denuncia a intemporalidade do medo como causa profunda de guerra. Podemos ver (sem estabelecer comparações quanto a desfechos) a Rússia como Esparta, a aliança transatlântica como Atenas, e a Ucrânia como o mundo grego [Hélade]. Os ‘espartanos’ da atualidade temem uma ‘Atenas’ forte no seu lado da ‘Hélade’ e, portanto, declararam guerra para o evitar.

O problema, porém, é o mesmo que os espartanos da antiguidade encontraram ao declarar guerra aos atenienses: perante a incapacidade de uma vitória decisiva no campo que force uma capitulação rápida do inimigo, é de esperar o prolongamento de uma guerra para a qual não se encontram em capacidade de sustentar logística e financeiramente.

Num mundo em que Tucídides fosse conhecido não pela falácia que lhe é atribuída – a “Armadilha de Tucídides” – mas pela sua distinção entre causas profundas e superficiais de guerra e como os acontecimentos escapam ao controlo e expectativa dos decisores políticos, a análise desta guerra não se ficaria pela “espuma dos dias”. Se Putin tivesse emulado Arquidamo ao invés de Estenelaidas, o cenário seria certamente distinto.

  • Colunista convidado. Aluno do 3º ano de Licenciatura de Ciência Política do IEP

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