O mistério dentro de um enigma

Amanhã terão lugar as eleições presidenciais na Rússia. Ao contrário do que é habitual noutros escrutínios eleitorais, não há incertezas, suspense ou até mesmo angústias em relação aos resultados.

Apesar da importância da Rússia no quadro geopolítico internacional, não se esperam horas de sono perdidas ou sobressaltos ao despertar, nem mesmo desses seres sensíveis e de humor matinal instável a que se convencionou denominar mercados. Vladimir Putin será eleitoralmente bem-sucedido, terá mais seis anos de mandato e tudo permanecerá estável.

Contudo, se não se adivinham riscos que possam advir de surpresas eleitorais, há muito quem noticie ou especule sobre outros riscos. Por estes dias a RTP 2 transmitiu a primeira temporada de uma série norueguesa, intitulada “Ocupados” (2014). Que da Escandinávia cheguem tríleres e enredos políticos capazes de nos agarrar já não nos surpreende, mas o argumento desta série, a partir de uma ideia de Jo Nesbo, faz-nos deambular entre a ficção e um futuro não muito distante ou totalmente inverosímil: na Noruega um Primeiro-Ministro é eleito com um mandato para suspender a produção petrolífera, na sequência de calamidades atribuídas às alterações climáticas. A trama adensa-se: o anúncio do cumprimento da promessa eleitoral de cortar a produção de petróleo provoca uma crise energética na União Europeia. A União Europeia pede à Rússia que “ocupe pacificamente” a Noruega até que a produção seja restabelecida. Tudo isto acontece num cenário em que os Estados Unidos já não fazem parte da NATO. A certa altura, na série, um jornalista pergunta: “será a Rússia o novo Polícia do Mundo?”. A temporada termina sem resposta a esta pergunta. E, numa sucessão de desentendimentos, o que ao início parecia uma situação paradoxalmente tranquila para o dia-a-dia dos cidadãos, evolui para um clima de alta tensão.

De volta à realidade, chocamos com a notícia de que o Reino Unido anunciou expulsar 23 diplomatas russos na sequência da morte de um “ex-espião” em território britânico (existirão “ex-espiões”?). Nada que surpreenda os leitores de John Le Carré, mas é, ao que parece, a decisão mais contundente desde o final da Guerra Fria. A Rússia repudia a medida e as acusações de envolvimento com igual contundência e o embaixador russo no Conselho de Segurança da ONU comparou a investigação britânica ao desacreditado Inspector da Scotland Yard Lestrade, dos policiais de Sherlock Holmes. Entretanto, o Secretário de Estado dos Estados Unidos Rex Tillerson, que entrou para o lugar sob o espectro de proximidade ao Kremelin, deixou o lugar fazendo avisos em relação à política da Rússia. E, numa rara declaração conjunta — “Nós, os líderes de França, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido…” — , Londres conseguiu reunir Washington, Berlin e Paris na crítica à postura da Rússia.

É da natureza da geopolítica que a Rússia ocupe um lugar cimeiro nas batalhas pelo poder internacional e no imaginário das desventuras de espionagem internacional. Mas, com mais seis de poder, pelo menos, até onde poderá ir o sucesso do regime da Rússia de Putin e até que ponto se pode constituir como um modelo concorrente das democracias liberais?

Num artigo na edição de outubro passado do Journal of Democracy, Steven Fish, professor de Ciência Política da Universidade da Califórnia em Berkeley, disseca as razões porque o “Putinismo” se apresenta como um poderoso desafio ao liberalismo de matriz ocidental. Fish aponta o conservadorismo, o populismo e o personalismo como os traços fundamentais do atual regime político da Rússia. Mas conclui que a excessiva dependência do petróleo, numa economia crescentemente controlada pelo Estado, a aversão à mudança e a personalização do regime em Vladimir Putin, mais cedo ou mais tarde, colocarão problemas de continuidade ao modelo vigente.

São famosas as palavras de Winston Churchill aos microfones da BBC sobre a Rússia em 1939: “Não consigo prever a ação da Rússia. É uma charada envolta num mistério dentro de um enigma; mas talvez haja uma chave. Essa chave é o interesse nacional da Rússia”. Não serão as eleições a provocar mudanças na Rússia, mas nunca é certo quando a realidade o fará. Em que sentido? Permanece o mistério e o interesse nacional.

  • Docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

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