
O pobre de classe média, mártir da prestação mínima
O verdadeiro pobre não é o que não tem nada. É o que quer tudo — e acha que o merece, só porque existe. E esse, meu caro leitor, está por todo o lado.
Há um novo mártir a vaguear pelas ruas e centros comerciais de Portugal. Não é o sem-abrigo da estação, nem o pensionista com reforma mínima, nem sequer o verdadeiro pobre que vive com o RSI (legitimamente concedido!) e um saco de arroz por semana. Não. É o pobre de classe média — também conhecido como o coitadinho a crédito. Vive no limiar da tragédia, diz ele, mas com carro financiado (muitas vezes o “belo” do Tesla), iPhone de última geração (que custa tanto como o ordenado mensal desse novo mártir), televisor de 65 polegadas e férias a prestações.
Este português moderno, trabalhador, indignado e endividado, sente-se injustiçado. Como é possível ganhar 900 ou 1.100 euros líquidos por mês e ainda assim não conseguir ir à Disneyland Paris com os filhos? Ou trocar de carro de dois em dois anos? Ou renovar a mobília da sala em 10 suaves prestações sem juros (que, naturalmente, têm juros escondidos)? Não é justo. Se o vizinho tem, ele também deveria poder ter. A ideia de que o consumo deve estar alinhado com a produtividade individual foi substituída por uma fé cega no crédito e numa espécie de “direito universal ao conforto premium”.
O problema é que Portugal continua a ser um país com baixo capital humano — e essa realidade não desaparece com slogans ou campanhas motivacionais. Segundo o Pordata, em 2024, apenas 29% dos adultos (15-64 anos) tinham ensino superior, e uma parte significativa da população ativa continua concentrada em setores de baixos salários e escasso valor acrescentado: restauração, comércio, transportes, estética, serviços básicos. Não há nada de errado com esses setores em si; são essenciais e merecem dignidade. Mas é um erro crasso exigir um padrão de vida escandinavo com uma estrutura económica que ainda opera a um nível muito aquém da média europeia em termos de produtividade e inovação. Em vez de reconhecermos esta limitação e trabalharmos para superá-la — através de mais qualificação, melhores competências e setores mais competitivos — opta-se muitas vezes pela vitimização fácil e pelo conforto do consumo a crédito.
A confusão instala-se: o que deveria ser um incentivo a melhorar — mais formação, mais produtividade, mais ambição racional — transforma-se num discurso de vitimização. “Somos todos pobres!” Não. Não somos. Uns não têm meios sequer para comer decentemente. Outros têm tudo — menos noção: vivem do cartão de crédito, do crédito pessoal, do crédito automóvel e de um ego inflado, vaidosamente irrealista, que não cabe no orçamento mensal.
Durante anos, os bancos (com a bênção implícita do sistema político) incentivaram este modo de vida. Com taxas baixas e prestações mínimas, empurraram o cidadão comum para uma bolha de consumo insustentável. E ele foi, feliz e contente, convencido de que estava “a subir na vida” só porque trocou o Renault pelo BMW.
Recentemente com a subida das taxas, a que se juntou a inflação mais elevada que come rendimentos e estando o crédito ao consumo em máximos históricos, descobre-se o óbvio: viver acima das possibilidades é confortável… até deixar de ser. Só em 2024, o crédito ao consumo cresceu cerca de 13 % face ao ano anterior. Além disso, cerca de 80% das operações — tanto novos créditos como renegociações — mantêm-se num nível elevado. São sinais claros de um endividamento familiar em ascensão. A culpa? A vida está mais cara, dizem. Mas ninguém menciona que talvez se tenha feito vida a mais para o salário que se tem. “É tudo culpa dos ricos!” A narrativa preferida destes mártires modernos é conhecida: a culpa é sempre de terceiros. Do governo, dos patrões, da Troika (já lá vão quase 15 anos!), da globalização, do capitalismo ou, em última instância, de “os ricos” — essa entidade difusa que aparentemente vive apenas(?!) para humilhar os outros com os seus T5 na Lapa, moradias na Praia Grande e férias nas Maldivas.
Mas, cá entre nós, será assim tão injusto que quem estudou mais, arriscou mais, investiu mais (em si ou nos outros) ganhe mais? É esse o contrato social moderno: quem oferece mais valor ao mercado, recebe mais. E está certo. O que não é justo é exigir a mesma qualidade de vida de alguém que fez escolhas mais arriscadas, difíceis ou simplesmente mais produtivas. Isso não é justiça, é ressentimento.
Em Portugal, a literacia financeira é tão baixa que ainda há quem ache que a solução para o crédito… é mais crédito. O Estado tenta, mas pouco ou nada ensina — porque, verdade seja dita, quase não há educação financeira nas escolas e muito menos ao longo da vida adulta. Esse vazio abre espaço para os influencers – os novos desempregados digitais – que vendem “liberdade financeira” como se fosse um produto milagroso: criptomoedas duvidosas, dropshipping sem riscos ou cursos para enriquecer em três meses, de preferência sem sair de casa. Resultado? Famílias que não sabem o que é uma TAEG, que não têm poupanças, mas que sabem de cor os festivais do próximo verão — e acham que ter um iPhone é um sinal de sucesso. E depois surpreendem-se quando tudo corre mal. Não há qualquer almofada financeira para o imprevisto, nem plano B. Basta uma despesa médica, um período de desemprego ou uma subida na taxa de juro para que o castelo de cartas desabe. E a culpa, inevitavelmente, recai sobre a “sociedade injusta” — como se a responsabilidade individual fosse um conceito obsoleto. É um grau de imaturidade económica e emocional que roça o absurdo.
O único caminho sólido para sair da precariedade não é o crédito, é o investimento em capital humano. Educação, formação profissional, competências digitais e linguísticas. É isto que permite a uma pessoa não depender eternamente do salário mínimo nem de prestações a 48 meses. Mas exige esforço, paciência, sacrifício. Palavras malditas numa sociedade cada vez mais infantilizada, onde o desejo instantâneo substituiu o mérito.
A dura verdade é que ninguém sobe na vida a comprar coisas. Sobe-se a produzir mais valor. Só que isso não dá “likes”, nem vem com saco da Massimo Dutti ou da Sacoor. Ironia das ironias: os verdadeiros ricos — aqueles que de facto têm património — não vivem a exibir bens de consumo, vivem a investir. Compram empresas, ativos, terrenos, tempo. Não andam a acumular gadgets e roupa de fast fashion como se isso fosse símbolo de estatuto. Enquanto uns exibem o último telemóvel comprado a prestações, outros compram silêncio, segurança e liberdade. E não o fazem para mostrar: fazem-no porque sabem!
Enfim, vivemos mergulhados numa pobreza que não é de meios, mas de mentalidade. Uma pobreza aspiracional, sustentada a crédito, mantida por ilusões e empurrada por incentivos perversos. Uma espécie de teatro trágico nacional, onde se exige vida de luxo com salário de base, e se glorifica o consumo como se fosse prova de estatuto moral.
Assim, o verdadeiro pobre não é o que não tem nada. É o que quer tudo — e acha que o merece, só porque existe. E esse, meu caro leitor, está por todo o lado. No café, no trânsito, nas redes sociais. E sobretudo na fila do banco, a renegociar pela terceira vez o crédito do carro que nunca deveria ter comprado. Pena, não tenho nenhuma. Porque pobreza de mentalidade não se resolve com prestações, resolve-se com responsabilidade — e essa, infelizmente, não se pode financiar.
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