O Presidente em Paris

Em Paris, a Europa evoca, na sua miséria lúcida, o lamento de uma enorme tragédia mantendo a convicção de que há no sacrifício e na morte uma qualquer elevação do pensamento que leva à redenção.

Centenário do Armistício da Primeira Guerra Mundial. Coberto pela volta do Arco do Triunfo o estandarte da França quase toca a chama que assinala a campa do soldado desconhecido. Os gueules cassées desapareceram das ruas de Paris, as figuras atormentadas pelo shell shock não se arrastam por Londres, as imagens sórdidas e disformes de Otto Dix não atormentam as vias de Berlim. Mas todos vivem e persistem na memória do Continente. Em Paris, a Europa evoca, na sua miséria lúcida, o lamento de uma enorme tragédia mantendo a convicção de que há no sacrifício e na morte uma qualquer elevação do pensamento que leva à redenção política. É a mitologia do passado – simplificar, simbolizar, historificar. O Presidente da Republica estará presente para benefício das gerações vindouras.

Mas a viagem começa no norte de França, no Cemitério Militar Português de Richebourg. O portão de entrada estende-se numa alameda de relva que conduz o olhar para o monumento no outro extremo do cemitério – o escudo nacional inscrito à força na pedra branca. Em cada lado fileiras de lápides dispostas em linha recta assinalam o lugar de cada sepultura. Entre cada fileira um corredor de relva onde é possível caminhar por entre os mortos. São 1831 os soldados aqui sepultados. Por identificar estão ainda 238 homens. Estranho como o castanho da lama dos campos da Flandres se transforma no fluido verde brilhante da relva; mais perturbante a ideia de como uma vala comum aparenta a ordem de um campo santo. O cemitério português é candidato a Património da UNESCO – o património da memória política de uma Europa exausta e devastada. Todas as noites o cemitério encerra ao som do toque “The Last Post”, como se de um verdadeiro e vivo acampamento militar se tratasse. Os sons vibram na consciência da Europa que fez a “guerra para acabar com a guerra”. Em La Couture a associação France-Portugal construiu um monumento ao Corpo Expedicionário Português. E o Cristo das Trincheiras, com o seu calvário mutilado pelos obuses, foi reedificado em Neuve-Chapelle. Neste lugar assinalado ao norte de França um grupo de portugueses analfabetos repousa depois de ter enfrentado o primeiro conflito mecanizado e industrial da História.

De regresso a Paris, o Presidente da República estará em representação de uma potência aliada, um país que ficou do lado certo da História. Com o Presidente estará também a imagem de Portugal reflectida na personalidade política do detentor do cargo. Ao olhar português, o Presidente exibe com transparência o vínculo da formação esculpida na Juventude Universitária Católica. A esta se junta a evidência de ter crescido e observado a experiência política de um paternalismo colonial, associado à latitude de uma ordem liberal marcelista e tendencialmente aberta a outros horizontes políticos – permanece a benevolência de um assistencialismo democrático. Ao Catolicismo Progressista o Presidente adiciona o reflexo escolar e pedagógico do Professor, o que explica o permanente diálogo e a profunda proximidade a todos e a cada um dos portugueses. Para o Presidente, Portugal é um anfiteatro de uma qualquer Faculdade em larga escala. Surge ainda a película do comentador político e a experiência política adquirida ao longo de quase 45 anos de exercício democrático. Acrescente-se a naturalidade espontânea e construída com o à-vontade de quem nasceu e cresceu no meio político e que se manifesta com um certo sentido de propriedade quanto ao seu lugar na sociedade e o seu direito ao cargo político. Entre a ditadura e a democracia, convergem na figura do Presidente as grandes forças sociais e políticas que assinalam o século português. Em Paris, na evocação do século europeu, o Presidente será o epítome do século nacional. Há coincidências felizes.

Se na Conferência de Paz, em Versailles, corria o ano de 1919, Portugal esteve presente para garantir a posse e a manutenção do Império Colonial, para assegurar a vigência da denominada Tese Europeia-Peninsular, para extrair o reconhecimento internacional para a República instaurada em 1910, para consolidar a legitimidade da República para fins de política interna, no Centenário do Armistício, Portugal apresenta-se em Paris como membro de pleno direito da comunidade de democracias empenhada na construção do progresso e da paz cujo símbolo é a União Europeia.

Peculiar o paralelo entre a Grande Guerra e a Europa. A Grande Guerra não trouxe a perfeita utopia de um futuro de paz e prosperidade que muitos idealistas sonhavam. Mas terá evitado o colapso do Continente e terá aberto a possibilidade para a paz e a democracia. Neste sentido, a matriz da Europa reside também na vitória de 1918. A ideia de um conflito fútil, a associação ao nacionalismo militarista, são visões que surgem apenas nos anos 60. Por ironia, em 1914 o propósito era precisamente combater as erupções militaristas. Talvez o grande símbolo e o grande legado da Primeira Guerra Mundial estejam na fragilidade vermelha de uma poppy – a convivência entre o sentido da solidariedade nacional e a consciência do sacrifício internacional. No Cemitério Militar Português de Richebourg não existem poppies. Uma ausência do tamanho do mundo.

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