O problema da justiça não é a autonomia
As buscas domiciliárias a Rui Rio serviram de pretexto a um ataque político à autonomia do Ministério Público. Há muita coisa errada na justiça, mas essa não é uma delas.
As suspeitas de corrupção na Defesa serviram para atacar António Costa no debate do Estado da Nação, mas a justiça propriamente dita passou quase de raspão. A saúde, a educação, e agora a habitação, é que fizeram as despesas da casa. Só que a justiça tem tantos ou mais problemas: é lenta, burocrática, demorada e demasiado cara para o bolso da grande maioria dos portugueses. É assim há anos e pouco ou nada mudou.
A União Europeia divulga anualmente o Justice Scorecard, com o objetivo de medir a eficiência dos sistemas judiciais de cada país. O último relatório foi divulgado em junho e indica que o tempo estimado para uma sentença de um processo num tribunal administrativo de primeira instância era de 800 dias em 2021. Ou seja, mais de dois anos. O registo português é o terceiro pior. Na Suécia, ronda os 100 dias.
O cenário melhora nos tribunais civis e comerciais, com o tempo estimado a baixar para 260 dias, o décimo mais elevado da tabela. Mas no caso particular dos processos de corrupção, o tempo médio é de 400 dias, só para a primeira instância. Na Bélgica ou na Dinamarca demora à volta de 100. Portugal é ainda o nono, em 23 países, com a maior carga de processos pendentes.
Pode levar horas, mas não há ninguém que seja privado do acesso a um hospital. Não há criança que a escola pública não acolha. Na justiça, não é assim. O elevado custo somado ao tempo dilatado, constituem uma barreira enorme à satisfação de um direito constitucional básico.
É também um fator que penaliza a competitividade da economia portuguesa. Não há relatório que não aponte a justiça como um entrave.
A justiça podia ser lenta, mas justa. Também não é. Continua demasiado permeável a expedientes dilatórios (só possíveis a quem mais rendimento tem), levando a que os julgamentos se arrastem indefinidamente. Por exemplo, o antigo primeiro-ministro José Sócrates e o ex-presidente do BES Ricardo Salgado foram detidos em 2014. No próximo ano terão passado dez anos.
Talvez seja essa a razão porque o segredo de justiça se transformou num segredo de polichinelo, vazado para a comunicação social. Julga-se na praça pública, porque a justiça dos tribunais não se sabe quando chegará, se é que chegará antes da prescrição. O que é terrivelmente perverso, porque a versão que sai é sempre a da acusação do Ministério Público. São todos culpados até prova em contrário.
O Ministério Público esteve a semana debaixo de fogo a propósito das buscas na sede nacional do PSD, na sede distrital do Porto e na casa do antigo líder Rui Rio, por suspeitas de uso ilegal de verbas do Parlamento para pagar a funcionários do partido. A operação envolveu cerca de 100 inspetores e ficheiros do partido copiados e levados da sede.
A proporcionalidade dos meios é bastante questionável face às suspeitas em causa, mas o que caiu pior foi mesmo estarem presentes as televisões durante as buscas domiciliárias. O visado enxovalhado antes sequer se ser arguido. Se é que o vai ser.
Rui Rio saltou à jugular do Ministério Público, acusando-o de o visar a ele, homem sério, para de uma assentada denegrir toda a classe política. Apontou até o ao principal beneficiado: o Chega.
A investigação partiu de uma denúncia feita por funcionários do partido no tempo em que Rui Rio era líder. É isso que o Ministério Público está a investigar. Ao que parece a prática é mais generalizada. Deviam as buscas ter sido também ao PS ou a outros partidos? Sim, mas caía à mesma o Carmo e a Trindade.
O caso serviu de pretexto para um ataque à autonomia do Ministério Público, que segundo tem sido dito é maior em Portugal do que noutros países. Até às buscas de dia 12 na casa de Rui Rio não era tema. Haverá partes da justiça capturadas por uma agenda ou interesses obscuros ligados à extrema-direita? Não passa de uma tese.
Há muita coisa errada na justiça, mas a autonomia do Ministério Público não é uma delas, desde que não ponha em causa ilegitimamente os outros poderes. E esse debate está seguramente longe de ser uma prioridade ao pé de tudo o resto onde a justiça falha.
Agora, autonomia não pode ser confundido com sobranceria. As buscas causaram alarme, levantam dúvidas, foi violado o segredo de justiça e levada informação sensível da sede de um partido político. Deviam merecer um esclarecimento do Ministério Público. Nenhuma instituição está isenta de prestar contas.
A procuradora-geral, Lucília Gago, reagiu a uma carta que lhe foi dirigida pelo PSD banalizando o caso. A queixa “será alvo de acompanhamento e análise, como todas as notícias que, como imagina, me chegam diariamente. Serão ponderadas, analisadas e se for o caso alvo de medidas gestionárias adequadas se merecerem essa apreciação”. A resposta não ajuda à causa do Ministério Público.
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