O problema é o governo
O programa de estabilidade 2017-2021 anunciado há dias trouxe, afinal, boas novas ao povo português!
Ao que parece, o Governo português está apostado em eliminar o défice público até ao final do mandato, está finalmente determinado em reduzir a dívida pública e, qual cereja em cima do bolo, propõe-se fazê-lo diminuindo a despesa pública sem aumentar a carga fiscal. Os seus parceiros parlamentares, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, rendidos às delícias de estarem na orla do poder, agora que ultrapassaram os fervores juvenis e revolucionários de outros tempos, não parecem discordar e deixarão passar. Melhor do que isto seria impossível. Como alguém disse um dia, não há nada melhor em Portugal do que um governo de esquerda para governar à direita! Dito isto, a minha recomendação ao senhor primeiro ministro é, pois, que avance a toda a força. Que não perca tempo. Meu caro Dr. Costa, mostre às agências de “rating” que as nossas contas públicas estão ao nível das de qualquer outro país do centro da Europa. Que o “rating” português é de luxo, não de lixo. Que bebida e mulheres, qual carapuça, que isso é na terra da protestantada, que isto aqui é gente séria, temente a Deus e ao diabo. E que faça tudo isso quanto antes. Antes que caiam as máscaras. Cos diabos!
As projecções orçamentais apresentadas pelo Governo no programa de estabilidade, como já deu para perceber nestes breves dias, não são para serem levadas (muito) a sério. Aliás, depois do exercício orçamental de 2016, eu diria que já nem mesmo os orçamentos do Estado, aprovados na Assembleia da República, são para ser levados demasiado a sério. Por isso se tenta descredibilizar o Conselho de Finanças Públicas, que no meio do ilusionismo institucionalizado vai zelando pela seriedade do processo orçamental. Todavia, é de salientar que o problema é complexo. Por um lado, as metas que decorrem do Tratado Orçamental – que, nunca é de mais repetir, foi ratificado por maioria qualificada no parlamento português – são muito exigentes e mais exigentes se tornam em face do nosso pobre ponto de partida. Por outro lado, os incentivos políticos estão sobretudo orientados para a obtenção das metas numéricas, e não tanto para a forma como as mesmas são atingidas. Bons resultados acompanhados de maus processos devem mais à manha, e a alguma sorte, do que propriamente ao rigor. Assim se desvaloriza a democracia como regime de meios (e não de fins). Assim se desvaloriza o plano dos princípios. Resta o cinismo. Cada qual safando a sua pele, um dia de cada vez. Os heróis já não são deste tempo. A contemporaneidade pertence aos tipos espertos.
Por entre este niilismo político, os números do programa de estabilidade apresentado pelo Governo, poderiam levar o incauto a uns vislumbres de libertação deste caminho da servidão, que a redução da despesa pública consubstanciaria. Mas não é crível que tal suceda. Persiste, desde logo, um enviesamento ao chamamento do Estado para resolver os problemas da sociedade. O seu efeito tende a ser imediato e os custos só se sentem a prazo. Mas não há almoços grátis, disse um dia Milton Friedman (Nobel da Economia em 1976). Este economista disse também que, ao contrário do que a maioria julga, o problema é o governo (“the problem is government”). Trata-se de uma das suas ideias mais marcantes, que dá título a este artigo de opinião. Para Friedman, já então, há quarenta anos, impunha-se um travão ao crescimento da despesa pública. Menos Estado equivaleria a mais liberdade. Pelo contrário, mais Estado, e poder mais concentrado, significaria maior opressão – da liberdade individual e da iniciativa privada –, restringindo o verdadeiro potencial da sociedade. A redução da despesa pública seria assim uma boa nova para os portugueses. Porque na acção pública existe um paradoxo insanável. Esta tende a ser invocada por razões quase sempre bem-intencionadas. Mas uma vez instituída, ela é subvertida, a expensas de todos, pelos interesses específicos daqueles que directamente beneficiam.
Dou um exemplo. Segundo consta, na bem-intencionada tentativa de estabilizar o sector financeiro, o Governo português prepara-se para tornar fiscalmente dedutível os chamados activos por impostos diferidos da banca. Ou seja, onde antes os bancos podiam abater aos lucros futuros parte das perdas acumuladas no passado – existindo lucros futuros e desde que realizados dentro de uma determinada janela temporal –, a partir de agora poderá muito bem suceder que aquelas perdas sejam anualmente deduzidas como custo fiscal de cada exercício. Ao que parece, falamos de 9000 milhões de euros, repartidos ao longo de quinze anos, em apoio ao cartel de bancos que hoje concentra 90% do sistema financeiro português. Ora, 9000 milhões de euros a dividir por 10 milhões de portugueses, durante quinze anos, resultará em 60 euros anuais por cidadão. Já os 9000 milhões de euros vistos aos olhos do cartel representarão em média mais de 100 milhões de euros por ano a cada membro do grupo. Naturalmente, será racional que estes bancos invistam muitíssimo no “lobby” junto do Governo e do regulador, enquanto que o cidadão comum pagará a conta sem dar por ela. Ao mesmo tempo, entre os demais sectores da economia, a começar nas restantes sociedades financeiras que não aquelas organizadas na forma de banco, muito legitimamente, questionar-se-á: então, e nós? Não teremos direito ao mesmo? A balbúrdia instalar-se-á e o Governo acabará a beneficiar os grupos que politicamente estiverem melhor relacionados, em detrimento de todos outros.
Outro exemplo. Novas regras internacionais contra o branqueamento de capitais determinarão que em Portugal as empresas passem a estar obrigadas à identificação periódica dos seus sócios individuais efectivos, isto é, dos seus beneficiários finais. Trata-se de uma ideia certamente bem-intencionado, a fim da transparência fiscal e do combate à ilicitude, todavia levado ao limite. A partir de agora, milhares de empresas serão obrigadas ao preenchimento regular de um formulário junto do Instituto dos Registos e Notariado (IRN). Outros actos societários também terão de ser prontamente comunicados ao Estado sob pena de infracção. Naturalmente, o IRN necessitará de novos meios para acomodar e policiar tão nobres propósitos. A Autoridade Tributária, uma polícia de facto mas não de jure, e que ficará com o acesso aos dados, também. E todo o tipo de empresas (de advogados, de serviços de “software”, e de tantos outros especialistas) terão aqui uma oportunidade para capturarem o Estado. A burocracia e os grupos de interesses autoinduzem-se deste modo. Imaginem agora esta situação reproduzida em múltiplas situações afins na administração pública. Milhares de milhões de euros atribuídos todos os anos em benefício de uns, pagos pelos milhões de portugueses que somos todos nós. Os grupos de pressão intensificarão o seu “lobby”, as suas ameaças, os seus avisos, os seus robalos, tudo a bem do interesse público. No final, o interesse público, ou da maioria, será substituído por uma minoria de interesses específicos, parafraseando Friedman.
Ora, aqui chegados, o que é que isto tem a ver com o programa de estabilidade do Governo? Porventura nada! Como aquilo não é para ser levado muito a sério, tudo isto não passa também de uma divagação. Do meu correspondente direito à fantasia. Que, para já, não paga imposto nem está regulamentado! Ricardo Arroja (Economista)
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