O sistema bloqueado
O voto preferencial é outra forma de prometer o melhor de dois mundos. Não está, é certo, imaculada de pecados e riscos, mas há formas de os minimizar. Talvez fosse uma forma de desbloquear o sistema.
Discutir o sistema eleitoral para o parlamento português e a sua eventual reforma é revisitar um debate com aparição certa e periódica no espaço público. O dilema é conhecido. Os sistemas eleitorais têm como principais funções assegurar a representatividade e a governabilidade, num equilíbrio e numa tensão permanente entre dois princípios que podem ser combinados em diversos graus. Já se sabe que não há sistemas eleitorais perfeitos ou ideais e que os que existem são fruto dos contextos políticos e sociais e de acontecimentos históricos concretos. O sistema eleitoral português nasceu do entusiasmo revolucionário em romper com o anterior regime e de perscrutar a “autêntica” vontade do povo.
O sistema de representação proporcional de lista fechadas e bloqueadas apresentou-se com naturalidade como aquele que mais eficazmente poderia responder a esses desideratos e, simultaneamente, permitir o estabelecimento dos partidos e de um sistema partidário. Era também aquele que (no véu de ignorância em que os partidos se encontravam relativamente à suas posições eleitorais, numa arena política sem resultados anteriores e sem sondagens que permitissem essa monitorização) permitiria minimizar desaires e que as principais correntes políticas garantiriam uma fatia da representação política.
Como acontece em todas as democracias, qualquer sistema eleitoral está sujeito a críticas e a que se discuta a possibilidade de reformas ou de alterações mais ou menos substantivas. O caso do sistema de representação utilizado para a Assembleia da República não é exceção. Mas também não se reveste de carácter singular o facto de raramente essa discussão se traduzir em alterações à lei eleitoral. As reformas eleitorais são raras e, em regra, só acontecem em circunstâncias extraordinárias.
Acresce que o princípio da representação proporcional está inscrito na Constituição da República Portuguesa e que para que possam ser alterados os principais componentes do sistema eleitoral é necessária a maioria de dois terços dos deputados. Por isso, apesar de todo o debate que ciclicamente suscita, e para além da redução de 250 para 230 deputados que foi aprovada 1989, o momento político em que se anteviu com mais próxima uma reforma do sistema eleitoral foi a Revisão Constitucional de 1997. Nessa revisão, ficou consagrado que a lei pode determinar um mínimo de 180 e um máximo de 230 deputados, bem como a existência de círculos plurinominais e uninominais, desde que assegurado o sistema de representação proporcional e o método de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.
Foi aberta assim a possibilidade e criada alguma expectativa de que o sistema pudesse evoluir para uma solução mista, próxima do sistema alemão, em que através da combinação da manutenção da representação proporcional com a introdução de círculos uninominais se pudesse obter um maior grau de personalização e de proximidade dos eleitos. Já não se tratava apenas de cumprir o desiderato da representatividade entendida como proporcionalidade e de assegurar a governabilidade. A uma demanda de uma melhor qualidade da democracia no debate público, correspondia uma resposta política e parlamentar que passava por uma maior personalização na escolha dos deputados.
Essas expectativas foram no entanto goradas e passadas duas décadas não se registou qualquer alteração ao sistema eleitoral. Vários méritos podem ser apontados ao sistema de representação proporcional em vigor, que, no limite, nunca deixou de responder de forma mais ou menos satisfatória às suas funções vitais. Mas também na interpretação da escolha racional das instituições se podem encontrar diversas explicações que têm em consideração o interesse dos eleitos e dos partidos.
Uma dessas explicações é a de que há uma natural, e insanável, divergência de interesses e de posições entre os partidos mais votados, PSD e PS, e os restantes partidos representados no parlamento. Aos partidos mais votados poderia interessar a alteração para um sistema eleitoral misto, com círculos uninominais, ao passo que os outros teriam receio de ver reduzida a sua representação. Poder-se-á sempre recordar que uma eventual compressão da proporcionalidade dependeria sempre da combinação dos diversos componentes e que a coexistência de círculos uninominais com um círculo nacional de compensação com metade dos deputados (como acontece Alemanha) poderia até aumentar a proporcionalidade (e aí o fator governabilidade é que poderia ser comprimido).
Mas, como muitos têm notado e até já apresentado soluções concretas, há outra resposta possível para a equação representatividade + governabilidade + personalização = mais qualidade da democracia. Trata-se da possibilidade da introdução de voto preferencial, numa das suas diversas versões conhecidas de listas fechadas e não bloqueadas ou de listas abertas, tão utilizadas em diversos países.
O voto preferencial é outra forma de prometer o melhor de dois mundos, que não está, é certo, imaculada de pecados e riscos vários. Mas também se conhecem formas de os minimizar. Talvez fosse uma forma de desbloquear o sistema.
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