O trabalho
Qual será o trabalho no futuro e o futuro do trabalho? Alexandre Soares dos Santos, presidente de Curadores da Fundação Francisco Manuel dos Santos, partilha a visão sobre o mercado de trabalho.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) promoveu, durante três dias, uma discussão sobre o trabalho no futuro e o futuro do trabalho. Com mais este Encontro, a FFMS procura continuar a viver à altura da promessa que fez aos portugueses: Contribuir para reforçar e aprofundar em Portugal uma cultura e uma predisposição para a reflexão e o debate, dignos desses nomes, sobre temas que nos importam a todos.
Ao longo destes três dias, vários pensadores, cientistas, investigadores, artistas, trouxeram-nos diferentes sensibilidades e perspetivas sobre as múltiplas dimensões que o trabalho assume e os desafios que se nos colocam na relação com o trabalho.
O trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem, do desenvolvimento de cada pessoa e da sociedade como um todo.
É comum ouvir-se dizer a algumas pessoas que se fossem ricas não trabalhavam ou que se a sua situação financeira se alterasse subitamente para muito melhor deixariam imediatamente de trabalhar. Mesmo descontando eventuais exageros ou simplificações excessivas, não compreendo essa forma de estar e de ser.
Aos 83 anos, não imagino a minha vida sem o trabalho. Fui assalariado, expatriado e, por isso, vivi em vários países, antes de efetivamente pegar no negócio da minha família para o desenvolver. Com um percurso de mais de 60 anos de trabalho, tenho legitimidade para partilhar alguns pensamentos sobre este tema.
Temos, pois, de rejeitar os trabalhos que degradam a nossa humanidade, quer porque atentam violentamente contra ela, quer porque a reprimem e não permitem a sua expressão.
Depois do que ouviram nestes dias [no Encontro], não julgo que esperem de mim uma análise diferenciadora sobre os impactos dos desenvolvimentos tecnológicos, as virtualidades da robótica ou as oportunidades e riscos da automação. Nasci profissionalmente na indústria, e nunca conseguirei habituar-me completamente às fábricas vazias de gente como já hoje as temos.
A indústria, enquanto atividade transformadora, sempre teve algo de mágico, a que a presença e o trabalho humanos acrescentavam significado. Há trabalhos que, por serem tão repetitivos e duros, têm pouco de humanos e, por isso, a humanidade não perde verdadeiramente quando são extintos.
Identifiquemos esses trabalhos que nada acrescentam à realização humana e substituamo-los por máquinas e tecnologia. Mas, atenção! Que essa procura delirante de infinitos ganhos de produtividade e de rentabilidade que as novas tecnologias sempre permitem não nos faça esquecer que o trabalho constitui um direito decorrente da própria natureza humana.
Com um trabalho digno, que reconheça a natureza do homem e da mulher como seres livres, dotados de inteligência, de vontade e de criatividade, o ser humano desenvolve-se, torna-se mais forte e preparado, enquanto dá o seu contributo para a sociedade. Para que também esta se desenvolva.
Temos, pois, de rejeitar os trabalhos que degradam a nossa humanidade, quer porque atentam violentamente contra ela, quer porque a reprimem e não permitem a sua expressão. E é aqui que a tecnologia pode ser uma enorme ajuda, ao permitir que o trabalho realizado por humanos aprofunde cada vez mais a sua humanidade.
Em todas as situações no mundo em que uma pessoa esteja reduzida a um mero instrumento de produção, deveria estar uma máquina no seu lugar.
Independentemente do maior ou menor valor que ele possa acrescentar, o trabalho tem uma essência humana, um valor ético e uma dimensão social. Hoje, mais do que nunca, nesta era da conectividade e das redes, trabalhamos com os outros. E temos, também, de trabalhar para os outros, sejam esses outros a nossa família, a nossa comunidade, o nosso país, ou, em última análise, o nosso planeta.
Num mundo e num mercado de trabalho cada vez mais globalizados, em que a competição pelos empregos é aberta entre trabalhadores das mais variadas origens, existe o risco real de pressão e degradação dos salários e das condições de trabalho a que estamos habituados na Europa.
Penso que não há ninguém que não preferisse que todas as pessoas pudessem encontrar onde nasceram condições de trabalho suficientemente justas que lhes permitissem sustentar-se – e às suas famílias – e contribuir para o desenvolvimento e a prosperidade dos seus próprios países.
À globalização soma-se, para a Europa, o grande desafio da integração dos migrantes e refugiados, entre os quais existem pessoas com níveis de instrução muito superiores àqueles de que necessitariam para desempenhar os trabalhos que conseguem arranjar.
Penso que não há ninguém que não preferisse que todas as pessoas pudessem encontrar onde nasceram condições de trabalho suficientemente justas que lhes permitissem sustentar-se – e às suas famílias – e contribuir para o desenvolvimento e a prosperidade dos seus próprios países. Mas não podemos olhar para o lado e fingir que não é connosco quando estão em causa problemas como o da crise migratória, com as suas implicações e consequências.
Estas fontes de pressão adicional expõem a nossa envelhecida Europa – e não só – aos populismos de toda a espécie, como temos vindo a ver. O trabalho e a proteção dos empregos para os chamados “nacionais” têm-se assumido como eixo central das narrativas xenófobas, que ganharam novo fôlego com a globalização e na sequência da crise de 2007-2008 que lançaram milhões de pessoas no desemprego e numa situação de permanente insegurança financeira.
Num cenário de aumento da população mundial, especialmente em zonas do mundo – como a África e a Ásia – onde a proteção social ou é inexistente ou fica dramaticamente aquém dos padrões europeus -, teremos de estar preparados para competir por esse direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é o direito ao trabalho, com tudo o que lhe é inerente. Nomeadamente o princípio, que deveria ser inviolável, de que “para trabalho igual, pagamento igual”.
Neste contexto de incerteza e complexidade crescentes, as empresas são chamadas a elevar o seu sentido de responsabilidade e de cidadania. E a contribuírem para a resolução dos desafios e problemas que se colocam às sociedades onde desenvolvem as suas atividades.
Ninguém se pode demitir de contribuir para a resolução dos problemas do desemprego e do emprego precário: poderes públicos, centrais e autárquicos, instituições de ensino, empresas, parceiros sociais, organizações não lucrativas, famílias, pessoas individuais.
Todos somos co-responsáveis pelos que se encontram em circunstâncias de maior vulnerabilidade.
No Grupo Jerónimo Martins, existe em Portugal, desde 2015, um programa de inclusão, com uma componente formativa e qualificante, que promove a empregabilidade de migrantes e refugiados, jovens em situação de risco e também de pessoas com deficiência.
No âmbito desse programa, só nos primeiros oito meses deste ano, o Grupo já formou mais de uma centena de pessoas, das quais contratou cerca de metade. Qualquer uma das pessoas contratadas tem exatamente as mesmas condições de remuneração e benefícios que um trabalhador português e sem deficiência que desempenhe as mesmas funções: «Para trabalho igual, pagamento igual».
Em 2012, esta Fundação apresentou um estudo científico com projeções demográficas que apontam para uma quebra significativa do número de pessoas em idade de trabalhar em 2060. Este cenário tem, aliás, sido confirmado por estudos nacionais e internacionais, nomeadamente pelo Ageing Report, da Comissão Europeia, que prevê, para Portugal, em 2060, menos 1/3 de pessoas em idade ativa do que hoje.
Isto é um desafio imenso para o país e para as empresas, que têm a obrigação de encontrar formas de prolongar as carreiras dos trabalhadores, e, ainda mais, para empresas cujo negócio tenha uma componente elevada de esforço físico, como é o negócio alimentar.
Trabalhar nas linhas fabris, descarregar mercadoria, repor produtos nas prateleiras, empurrar paletes, amanhar peixe, desmanchar peças de carne, ser operador de caixa, são trabalhos árduos também fisicamente. Alguns podem facilmente ser substituídos por robots e automatização, e, mais cedo ou mais tarde, sê-lo-ão. Outros não.
A falta de emprego não se resolve com formas de distribuição de rendimentos que não dependam do trabalho… como seria, por exemplo, a criação, advogada por alguns, de um rendimento básico universal e incondicional.
Não acredito na utopia de um futuro livre de trabalho, em que tudo estará entregue à tecnologia. A história tem demonstrado que as revoluções tecnológicas, apesar de extinguirem profissões e atividades, acabam por criar novos trabalhos e – não raro – intensificar a procura por outros já existentes, como podem vir a ser os casos dos trabalhos agrícolas e industriais.
Sei, no entanto, que os períodos de transição são sempre duros e que nos esperam tempos difíceis e desafiantes em muitas dimensões, nomeadamente na do trabalho. Tempos em que o empobrecimento dos mais velhos depois de uma vida de trabalho e o desemprego dos jovens são problemas que nos devem preocupar.
Não se pode acreditar que o problema do desemprego se resolve com a criação de emprego precário, injustamente pago, explorador das conjunturas e das fragilidades das pessoas.
Da mesma forma que, na minha opinião, a falta de emprego não se resolve com formas de distribuição de rendimentos que não dependam do trabalho… como seria, por exemplo, a criação, advogada por alguns, de um rendimento básico universal e incondicional.
Não podemos esquecer que o capital nasceu do trabalho. E que, por isso, é obrigação do capital criar emprego e postos de trabalho dignos. As pessoas são mais importantes do que as coisas. Defender o direito das pessoas ao trabalho é mais importante do que aumentar lucros. O dinheiro não pode estar no centro da vida, ele não é um fim em si mesmo.
Os economistas sabem que as crises económicas são cíclicas e, por isso, inevitáveis. Mas temos a obrigação de lutar para que as crises económicas não tenham de ser também crises éticas e humanas. A dignidade do capital e dos capitalistas é indissociável do reconhecimento do primado do ser humano e do sentido do Bem Comum.
As empresas são também – devem ser – instrumentos da luta contra a pobreza e o desemprego. As empresas privadas têm a responsabilidade de gerar lucros e os acionistas dessas empresas têm a responsabilidade de reinvestir parte dos lucros na promoção do emprego e da prosperidade económica e social.
As empresas são feitas de pessoas. Isto é verdade, do nível hierárquico mais baixo ao mais elevado. As empresas fazem-se dos comportamentos e dos valores das pessoas que as constituem, especialmente dos seus dirigentes e acionistas, a quem cabem responsabilidades acrescidas, desde logo de proteger o emprego e o direito das pessoas ao trabalho digno.
Durante o período de crise que Portugal viveu recentemente, prometi que não haveria despedimentos e que criaríamos um Fundo de Emergência Social para apoiar, a fundo perdido, os colaboradores que, por diversas razões, estivessem a viver situações de necessidade. Esse Fundo mantém-se ativo até hoje no Grupo Jerónimo Martins, que já lhe alocou cerca de seis milhões de euros.
Os Estados – enquanto legisladores e, por essa via, empregadores indiretos – não podem asfixiar as empresas com uma rigidez do enquadramento laboral que proteja aqueles que só vêem no trabalho um direito e facilmente esquecem que o trabalho é também um dever.
Repudio veementemente o despedimento fácil, a descartabilidade com que alguns mercados e muitas empresas encaram os seus trabalhadores, a total indiferença à sua dimensão humana e familiar.
A proteção do emprego deve ser, em primeiro lugar, uma preocupação da empresa que, num determinado momento, o criou.
Mas os Estados – enquanto legisladores e, por essa via, empregadores indiretos – não podem asfixiar as empresas com uma rigidez do enquadramento laboral que proteja aqueles que só vêem no trabalho um direito e facilmente esquecem que o trabalho é também um dever.
É essencial que cada um viva com sentido de missão o seu trabalho profissional. Sermos inteiros, pormos quanto somos no mínimo que fazemos, como dizia Fernando Pessoa. Podemos – e, quanto a mim, devemos – olhar para o trabalho e para a profissão como uma forma de traduzir e expressar os nossos ideais e valores. No fundo, de mostrar quem somos e o que queremos para a nossa vida.
Em todas as pessoas existe vontade criadora, e todas as pessoas desejariam que algo permanecesse da sua passagem pela vida pela qual pudessem ser reconhecidas e lembradas, deixar obra.
É uma exigência ética realizarmos bem o nosso próprio trabalho, qualquer que ele seja. E isso tem uma dimensão de competência técnica e uma dimensão de valores.
Interessam-me muito pouco profissionais excelentes do ponto de vista técnico que desconheçam ou desvalorizem a diferença entre o Bem e o Mal, o Justo e o Injusto.
Não me interessam mentes brilhantes que se alimentem da supremacia dos fortes sobre os fracos, ou de outra qualquer forma de autoritarismo, desumanidade ou desrespeito pela vida e dignidade humanas.
Aparentemente, os chamados millennials – e, já depois deles, a ‘geração Z’ – estão a distanciar-se das empresas, confiam menos nelas e são menos leais. Não é apenas o dinheiro que move estes jovens profissionais e, certamente, não é a estabilidade de um emprego garantido que procuram. Sendo embora mais ambiciosos do que as gerações anteriores, querem trabalhar de forma ética, com líderes inspiradores, em empresas e atividades com impactos positivos para a sociedade e o ambiente. No fundo, estes jovens querem ser agentes da mudança que gostavam de ver acontecer no mundo.
Um olhar cínico poderá ver neles apenas gerações sem capacidade de sacrifício, que se permitem idealismos à custa do que foram as duras vidas dos seus pais e avós. Essas gerações que viveram antes, e que, em tantos casos -em nome da necessidade imperiosa de sustentar a família – tiveram de sacrificar o significado que também procuravam no trabalho.
Vejo nestes jovens – e na necessidade de atraí-los e retê-los – o maior desafio que se coloca às empresas que queiram sobreviver ao século XXI. Não só porque eles serão, muito em breve, a esmagadora maioria da população activa mundial, mas sobretudo porque precisamos da sua ambição e da consciência social e ambiental que eles manifestam e trazem consigo.
A estes jovens dirijo as minhas últimas palavras.
Para pedir-lhes que honrem os sacrifícios dos seus pais e avós e liderem a revolução tecnológica em curso com sentido ético e dimensão humana. Que ponham essa revolução ao serviço também da revolução ecológica de que a humanidade precisa se salvar.
Em vós – jovens e líderes do amanhã que já começou – depositamos a nossa esperança. E a confiança de que saberão, com as vossas qualificações, os vossos espíritos livres e mentes abertas, fazer, cada vez mais, do trabalho a via para o desenvolvimento da criatividade, da prosperidade e da realização humanas no planeta Terra.
Nota: Este artigo é a base do discurso de encerramento de Alexandre Soares dos Santos no Encontro da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dedicado ao Trabalho
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
O trabalho
{{ noCommentsLabel }}