A greve de todos os dias na ferrovia

O sector ferroviário precisa de capital. Ou o tem, conforme tantas vezes garantem, ou é fundamental colocar esse problema de escassez à consideração dos eleitores. E já.

Da maior paralisação ferroviária dos últimos anos sai a certeza de que o sector, mesmo na sua configuração terceiro-mundista, não sobrevive muito mais tempo assim. Não são só os salários em questão desta vez, mas também a real falta de meios que obriga os ferroviários a algumas das mais desagradáveis experiências profissionais das suas carreiras.

Para lá da histriónica experiência dos repetidos anúncios do Ministério do Planeamento, existe uma realidade duríssima e que se agrava diariamente. O Governo está em greve desde que tomou posse. O ministério debita com leviandade estatísticas e promessas que são tão vagas como o pensamento político que lhes está associado, procurando tapar uma peneira já larga demais.

Há pouco tempo, numa entrevista à SIC, o secretário de Estado garantia que a CP tinha os novos comboios que queria. No entanto, foi público que no início de 2016 a CP quis alugar mais comboios, nomeadamente de longo curso, para precaver a imobilização dos comboios pendulares durante a sua renovação de meio de vida. Foi público que a CP orçamentou a renovação de 25 carruagens para serviço Intercidades. Que orçamentou mais um motor diesel para as unidades diesel que estão a falhar todos os dias no Algarve e no Oeste. Que preparou um programa de investimento para 35 comboios e não apenas os 22 que agora irão a concurso. Não se demite?

A mentira é o recurso que o Governo encontra quando lhe interrompem a greve. Apesar dos constantes desmentidos que enfrenta na Assembleia da República e por todo o país, o ministro não se mostra preocupado por contratarem menos pessoas do que as que saíram em 2017 e 2018, nem com as consequências dos novos enquadramentos legais para as longas carreiras, sendo sabido que tais regimes de reforma antecipada terão particular impacto no sector ferroviário, onde era habitual começar a trabalhar muito cedo.

Nem o famigerado concurso de comboios escapa à mais despudorada intoxicação. Já foi anunciado várias vezes, mas continua por colocar em marcha. Dizem-nos que os comboios demorarão quatro anos a chegar por excesso de trabalho dos fornecedores, mas a realidade é que o Governo é que apenas permitiu a maior execução desse contrato a partir de 2023. A Letónia encomendou a semana passada novos comboios à espanhola Talgo, com prazo de entrega de 18 meses. Na CAF, também em Espanha, garantem entregas em um ano. Percebo que brincar com a ignorância do grande público seja divertido, mas não devia ser a ocupação de pessoas com responsabilidades. Os comboios demorarão porque o Governo os chutou já para a legislatura 2023 – 2027. Tudo o resto é propaganda sem vergonha.

Entretanto, os comboios fazem greve. O ministro bem pode troçar, numa acção de propaganda em Barcelos, que lhe perguntam pelas supressões do Algarve quando 98% das circulações previstas são feitas. Senhor ministro, até 99% pode ser um mau número. As constantes supressões no Algarve significam horas de espera, porque não há comboios a cada 10 minutos. O Jornal de Barcelos titulou a esse propósito que o ministro foi aquela cidade brincar aos comboios e não terá andado longe da realidade.

O ano está no fim e quase nada do que foi anunciado à pressa no Verão, a grande maioria já pedido desde o início deste Governo, está concretizado. De 102, só entraram 30 pessoas na EMEF. Não começou ainda nenhuma renovação de carruagens. A unidade eléctrica espanhola ainda não veio para ensaios. Não há data para virem as unidades diesel alugadas. O Ferrovias 2020 atrasa-se todos os meses e nem se conhece o detalhe do que será feito na Beira Alta ou do que será feito na linha de Cascais. Estamos a dias do prazo limite para a contratação de serviço público (obrigatória em 2019!) e nem sequer sabemos que linhas, serviços, frequência e critérios de qualidade vão ser usados. Como pode o país discutir que nível de serviço quer, se a dias do fim do prazo ainda nem informação pública existe?

A greve da vergonha também é um dado adquirido. Logo ela que tanta falta faz a este elenco, que continua incompreensivelmente suportado por um primeiro-ministro completamente alheado da maior crise ferroviária da nossa história. Até quando? O que é preciso acontecer na rede ferroviária para se lembrarem que ela existe? O sector precisa de capital. Ou o tem, conforme tantas vezes garantem, ou é fundamental colocar esse problema de escassez à consideração dos eleitores. E já.

PS: Só a propaganda não está em greve. Durante a greve dos ferroviários, a comunicação do ministério esteve metade do dia a garantir que 100% do serviço estava a ser feito. No entanto, a própria CP dizia durante a manhã que dois terços dos serviços estavam por realizar, e o cenário ainda havia de piorar pelo dia adentro. É muito sério que um canal de comunicação oficial sirva para intoxicação propositada do espaço de debate público ao invés de enfrentar a verdade. O garante das instituições do nosso regime tem de baixar à terra e ocupar-se mais das vísceras do regime, sob pena de um dia todos nos arrependermos do curso que isto leva.

Nota: O autor opta por não escrever de acordo com o novo acordo ortográfico.

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