As 35 horas na Função Pública e a maioria absoluta

Começo a pensar que tanta incompetência se pode pagar com a fuga da maioria absoluta. E se calhar o Presidente da República não vai perder a oportunidade de meter uma farpa das dele e ajudar à missa.

Hoje vou ser muito politicamente incorreto. Se alguém pensasse que, como outros comentadores, me quereria candidatar a Presidente da República, de imediato ficará hoje esclarecido.

Vou falar das 35 horas semanais na Função Pública.

Como explicarei, este tema pode explodir no meio das habilidades de António Costa. Ou seja, uma das medidas mais populares do PS e da gerigonça pode ter o efeito oposto. E isso por alguma leviandade do PR e total incompetência do governo e da administração pública que dirige. Porquê?

Em primeiro lugar a popularidade

Baixar de 40 para 35 horas, significa aumentar os salários bem mais de 12,5% de um dia para o outro. Ou, pelo menos, foi isso que pensaram os felizes beneficiados.

O que é fácil de explicar. Por mais que se dissesse o contrário, com a facilidade com que políticos mentem sem pestanejar, todos os funcionários públicos sabiam que como regra a única solução a curto prazo para não degradar os serviços eram as horas extraordinárias e só a médio prazo o aumento do número de funcionários.

Para 2018 acabou o corte de 50% decretado por causa da troika no acréscimo a pagar pelas horas extraordinárias. Assim a primeira hora voltou a ter um acréscimo de 25%, e daí para a frente de 37,5% em cada hora adicional.

A alegria inundou os corações dos felizes beneficiados. Compreensivelmente. E para muitos isso era mais do que merecido.

Mas isto é ainda melhor do que parece. É normal em muitos serviços que a primeira meia hora de manhã sirva para aquecer os motores com um cafezinho e dois dedos de conversa e ao longo do dia, e no seu final, outra meia hora para descompressão. Nada de anormal num país de brandos costumes e convivialidade.

Nesses casos, muitos ou poucos não sei, as 40 horas já eram pouco mais de 35 e agora passaram a ser pouco mais de 30, pois os hábitos não mudaram nas situações de que aleatoriamente me vão falando. Por isso, mesmo sem o prémio das horas extraordinárias que referi atrás, o aumento salarial induzido da redução do tempo de trabalho foi superior a 15%.

O que fez o Presidente da República?

A alteração do regime foi aprovada em 2 de junho, promulgada pelo Presidente da República em 7 de Junho e foi publicada como lei 18/2016 em 20 de junho para entrar em vigor 10 dias depois. Por uma vez a eficiência a funcionar…

Um Governo competente não teria criado um período tão curto de vacatio legis. Um Presidente da República não tão preocupado com a sua popularidade não teria lavado as mãos como Pilatos. Era evidente que a promessa de que não haveria efeitos de aumento da despesa não era para ser cumprida. E, por isso, deveria ter vetado a lei por razões políticas devido à total inexistência de garantias deste tipo.

Mas não. Marcelo Rebelo de Sousa fez uma nota com um texto críptico (como só ele sabe fazer), de que transcrevo alguns excertos que considero especialmente deliciosos:

“Porque se dá o benefício da dúvida quanto ao efeito de aumento de despesa do novo regime legal, não é pedida a fiscalização preventiva da respetiva constitucionalidade, ficando, no entanto, claro que será solicitada fiscalização sucessiva, se for evidente, na aplicação do diploma, que aquele acréscimo é uma realidade”,

E, logo a seguir:

“Em suma, … instando o Governo – que, sistematicamente defendeu, perante o Presidente da República, que essa visão era a que perfilhava -, a ser extremamente rigoroso na citada aplicação, sob pena de poder vir a enfrentar fiscalização sucessiva da constitucionalidade”.

Ou seja, em português, Marcelo dá “benefício da dúvida”, e por isso promulga, de que a despesa não vai aumentar, pois foi isso que o Governo “sistematicamente defendeu perante o Presidente da República”. E sibilinamente avisa que suscitará a questão da inconstitucionalidade se assim não for … na certeza de que não será o Tribunal Constitucional quem arriscará então a impopularidade.

E que faria um Governo competente?

Portanto, há dois anos a alegria naturalmente transbordou para as férias e para os índices de popularidade do Governo. Quem manda falou ou assobiou para lado.

O que faria um Governo competente?

Em primeiro lugar não se esqueceria – palavra dada é palavra honrada – do que o primeiro-ministro afirmara no dia 25 de Maio de 2016, uns dias antes da votação, o seguinte:

“A proposta de redação que o PS apresentou corresponde aos requisitos constantes no programa do Governo, que é a adoção desta lei sem que isso implique um aumento da despesa global. (…) Espero que essa norma seja aprovada, (…) sem que isso implique um aumento de custos para a despesa pública.”

O Governo e o PR sabiam que isso era mentira pois ninguém podia achar que a produtividade ia aumentar milagrosamente em 15% de um dia para o outro.

Por isso, e para minorar ao menos os efeitos, o Presidente da República deveria ter vindo a lembrar de forma regular a sua sibilina declaração já citada, em vez de dizer agora que ainda é cedo para fazer o balanço da mudança; e o Governo já teria feito uma reestruturação clara na função pública.

Desse modo se tentaria ao menos que o resultado não fosse o incumprimento pelo Governo do que “sistematicamente defendeu perante o Presidente da República”, nem a degradação dos serviços (que curiosamente não preocupou há dois anos quem manda em nós).

Nada disso foi feito, como agora é evidente. E as notícias que aparecem sobre degradação dos serviços, sobretudo em relação aos hospitais, são evidentemente o que era de prever.

E podia ainda ser pior: lembremos que nos hospitais há muitos trabalhadores estatais com contratos individuais de trabalho que não foram beneficiados com a redução de horário (vá lá saber-se porquê) o que minora os efeitos. Mas noutros setores os efeitos para o serviço público serão piores, pelo menos atrasando-se em 15% o tempo das decisões de que todos vamos dependendo.

E agora?

Bom, agora os portugueses estão todos naturalmente zangados. Os utentes dos serviços públicos, os trabalhadores estatais que continuam com horários de 40 horas, os trabalhadores com 35h que se forem dedicados (e muitíssimos são) acabam a trabalhar com mais stress e a sofrer mais queixas dos cidadãos que evidentemente consideram injustas e como regra serão.

Esse mal-estar generalizado será, como é óbvio, visto como ingratidão pelo primeiro-ministro. Será; mas ele sabe também que a política é como é. Eu sei que tem andado tão entretido a trautear a “minha alegre casinha” que se terá convencido que fora dos palcos também era assim.

Por isso começo a pensar que tanta incompetência se pode pagar com a fuga da maioria absoluta. E se calhar o Presidente da República vai lembrar-se da sua nota sobre as 35 horas de há dois anos e não vai perder a oportunidade de meter uma farpa das dele e ajudar à missa nesta, como ele gosta de dizer, “patriótica” missão de evitar a maioria absoluta do PS.

Ai é verdade, já me estava a esquecer. A passagem para as 35 horas em 2016 tornou Portugal, com França e Irlanda, nos três países da Europa com horário mais baixo na Função Pública. No pelotão da frente, claro, como se fossemos um dos três países mais ricos e com as finanças mais sólidas…

Duas notas finais

A primeira sobre a marca Ronaldo. Muitos acham que não faz sentido Ronaldo sair do Real Madrid e que para este clube é absurdo “vendê-lo” apenas por 100 milhões de euros.

Nada mais errado. Ronaldo é uma marca de prestígio mundial. Mas após 9 anos a dar rendimento ao Real Madrid, a marca vale menos. A sua entrada no Juventus já aumentou o valor das ações em metade do que vai custar ao clube em 4 anos. E veja-se o exemplo das camisolas (de que em 2016 foram vendidas 600 000 pelo Real Madrid): uma nova equipa vai fazer aumentar as vendas, se comparadas com as que venderia se fosse afinal quase apenas mais do mesmo.

E em Itália Ronaldo só vai pagar 100 000 euros por ano de impostos sobre as dezenas de milhões que ganha fora de Itália. Ou seja, ambos ganham com o negócio; e seguramente que o Juventus também. E lá vamos nós passar a ver o campeonato italiano (ou Série A, como lhe chamam).

A segunda nota é sobre as crianças que ficaram retidas numa gruta na Tailândia. São 13 pessoas. Quase em simultâneo naufragou no mesmo país um barco cheio de turistas e os mortos e desaparecidos são cerca de 90 pessoas.

De um lado a cobertura mediática horas a fio em todas as televisões do mundo. Do outro lado, quando muito, uma nota de rodapé a correr nos ecrãs uma ou duas vezes numa semana.

Esta realidade devia fazer-nos pensar. Não nego a genuína comoção perante a sorte de crianças. Mas a lógica da comunicação não é essa, antes a capacidade que tenha de durar. Por isso se as crianças tivessem morrido numa hora e os náufragos estivessem agarrados a um bote durante dias a fio, podem estar certos de que as notícias seriam diferentes.

É lamentável? Não, claro. São as regras do jogo. Mas é uma lição que poder ser meditada para outras finalidades, entre as quais as estratégias de comunicação dos políticos. Parece estranha a comparação? Parece, realmente. Mas como disse Cunhal a outro propósito, “olhe que não, olhe que não…”

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