O esquerdismo pelo PS adentro

José Miguel Júdice avalia a afirmação de Pedro Nuno Santos no PS, a guerra que aí vem dentro do partido, e os ataques aos socialistas moderados, mais próximos dos negócios.

Esta semana, temos três temas que à primeira vista parecem nada ter a ver uns com os outros, mas que, em minha opinião estão muito relacionados: O Congresso do PS, os problemas do ministro Adjunto Pedro Siza Vieira e a despenalização da eutanásia que será votada na terça-feira. Porquê? Muita coisa foi dita, pelo que faço apenas um resumo com o essencial.

Pedro Nuno dos Santos

O vencedor do Congresso foi Pedro Nuno dos Santos. Surgiu como o líder da ala esquerda e estatizante do partido (que, ao contrário do que alguns dizem, não existia realmente desde que Zenha e Soares a mataram em 1975). Mas uma pergunta não foi ainda respondida: Qual a razão para ele se ter chegado à frente, sabendo que Costa está de pedra e cal no poder e que, na política, as falsas partidas costumam ser perigosas?

A razão parece-me óbvia: É o socialista mais especializado na geringonça. Percebeu que a geringonça provavelmente pode acabar daqui a um ano se o PS tiver maioria absoluta ou até se não a conseguir. Quer evitar que a “ala moderada” do PS o puxe para um acordo com o PSD e tudo tentar para manter o espírito da geringonça.

Realmente, se não houver maioria absoluta, pode ser que tenha força para conseguir impor a Costa o refazer da geringonça em que acredita, como alguns no PSD acreditam na AD. E, se assim não for, se não conseguir, tem tudo a ganhar com esta estratégia, passando a ser o challenger de António Costa.

A alma do PS

Na Batalha, o essencial foi a luta pela alma do PS e pela sua definição. Durante décadas, a estratégia do PS foi ser o partido natural de Governo, captando o voto útil à esquerda e apostando em governar ao centro. António Costa deu credenciais de esquerda ao PS: Porque acredita nisso e porque não tinha outra alternativa em 2015 após ter perdido as eleições. Mas não há bela sem senão, diz o povo e tem razão. O efeito natural é que isso despertou dentro do PS a tentação da Frente Popular, e surgiu no PS o “esquerdismo” que Mário Soares sempre temeu e foi matando sempre que queria renascer. E assim que geraram as condições para uma intestina luta interna.

Se o que Pedro Nuno Santos exprime triunfar, assim se consolidará uma alteração da “alma do PS”. A luta dos “esquerdistas” será tudo fazer para que o PS não cresça tanto ao centro que torne irrelevante as alianças à esquerda. Nunca o confessarão, mas o que mais temem é que António Costa conquiste a maioria absoluta. Os “moderados” querem a maioria absoluta por razões opostas. Por isso, a guerra vai ser sem quartel. Como é típico de “esquerdistas”, a ala mais moderada e próxima dos negócios e das empresas será o inimigo principal.

Os ataques ad hominem

O afastamento do Governo, no ano passado, de alguns nomes fortes entre os “moderados” por pecadilhos irrelevantes (e que, aliás, faziam parte da consensual cultura de proximidade ao futebol e às empresas reinante desde sempre na classe política) já anunciava aquilo a que iríamos assistir.

Mais recentemente, começaram a aparecer mais alguns sinais claros no plano autárquico em Lisboa e a perceber-se quais os alvos evidentes que a força dos “esquerdistas” nos “media” vai potenciar: Fernando Medina, os amigos de Costa (como Siza Vieira e Lacerda Machado), Francisco Assis, Carlos César, o líder dos Açores, e de um modo geral os defensores da conquista do centro, que se cuidem…

Em minha opinião, os ataques a Siza Vieira não são, pois, mais do que uma peça na estratégia de sangrar os “moderados” para com isso isolar António Costa e limitar contrapesos. Que fique claro, Pedro Siza Vieira cometeu erros eticamente irrelevantes que poderia ter evitado. Mas o que mantém o assunto vivo é a política e vem de dentro do PS, como certas notícias sobre temas autárquicos em Lisboa têm a mesma origem e pretendem evitar que Medina (o líder natural dos “moderados”) saia vencedor nas autárquicas em 2021 ou desista mesmo de se candidatar.

E António Costa?

No essencial, o Congresso não fugiu do guião que ele marcara. Por isso, ganhou como quis.
Mas quando um líder incontestado, que pode obter a maioria absoluta daqui a um ano e meio, apesar disso, sente necessidade de dizer publicamente (com uma falsa ironia, típica de quem não brinca em serviço…) que não está a pensar meter os papéis para a reforma, isto tem um inevitável significado político.

António Costa é um perito em jogar com as contradições dos seus apoiantes, a cada grupo dando alguma coisa, mas compensando isso permanentemente com a pulsão oposta. Ter uma ala esquerda e uma ala direita entre os seus apoiantes é uma forma clássica de surgir acima das contradições como unificador e de manter todas as opções em aberto. Para isso, um congresso anestesiado e anestesiante era preciso.

Mas Pedro Nuno Santos claramente decidiu enfrentá-lo, apoiando-o. E o efeito anestesiante não ocorreu apesar da anestesia ter sido bem preparada. Ou seja, e as coisas são o que são, no rescaldo do Congresso, passou a existir uma linha “oficialista” e um “challenger” com vida própria, o que bipolariza o que devia ser apenas uma unidade com duas linhas “costistas” equilibradas.

O primeiro-ministro tem, agora, três hipóteses: Assumir-se como chefe e menorizar Santos ao ponto de o tentar levar à inexistência, dar palco a um líder da ala moderada para equilibrar as coisas, ir começando a negociar com o “challenger”. O que optar por fazer vai antecipar o que tenderá a ser a próxima legislatura. E aqui continuarei atento às evoluções.

A eutanásia

Mais uma vez, quero saudar o excelente trabalho dos meios de comunicação sobre este tema. Creio que tudo foi dito e acho que se pode concluir que a lei tem tudo para chumbar e, se não chumbar, tem tudo para ser vetada politicamente pelo Presidente da República. E, se não o for, tem tudo para ser chumbada pelo Tribunal Constitucional.

Não vale então a pena perder o vosso tempo com isto? Em minha opinião, vale a pena e por três motivos, um ético-social e dois políticos:

  1. Em primeiro lugar, depois do que tem sido dito e escrito, das posições públicas que se ouviram, os portugueses ficaram informados e preparados para refletir sobre este tema em que se chocam mundividências distintas. E isso é bom para reforçar a Cidadania.
  2. Em segundo lugar, porque este tema quebrou a esquerda de uma forma muito curiosa, ficando o PCP no lado mais conservador. Isso explica melhor a divisão entre os comunistas e, do outro lado, os bloquistas e o PS, do que fariam resmas de papel escrito ou horas de debate aceso.
  3. Finalmente, é importante pelo ato falhado de Rui Rio, que curiosamente não vi ninguém registar e comentar. Que disse o líder do PSD? Que era “violentamente” favorável à despenalização da eutanásia, que era chocante a pressão dos que se opõem a isso, que começava a lamentar ter dado liberdade de voto no PSD.

É isto um tiro no pé, sabendo-se que a base eleitoral e o pessoal político do PSD são tendencialmente contra a despenalização por razões éticas e políticas, pelo que ganhava em ser mais sereno. Mas isso ainda é o menos.

O que me parece mais grave é o que revela do seu temperamento autoritário e centrado nele, que eu sempre soube e disse ser o seu: como é possível que um líder político queira governar quando acha intolerável que quem discorde de uma política lute contra ela com toda a energia? Ou que ache que a liberdade é uma belíssima coisa desde que não sirva para lhe dar desgostos?

O PSD tem de sossegar a sua base eleitoral e os seus quadros para não se sair mal das eleições. A eutanásia – sendo-o ou não – surge como mais uma causa fraturante da esquerda caviar, de intelectuais ainda jovens, de quem não se preocupa muito em ponderar com muita cautela um tema que pode ter implicações imprevisíveis. Rui Rio não parece estar preocupado com isso. Ele lá sabe as linhas com que se cose…

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