Ordenamento de Estado

Há uma mentalidade vigente que nos diz que o Estado consegue prever o futuro e um Zé Ninguém é um malandro que é preciso controlar.

Um dia destes (20 de Janeiro de 2020) a manchete principal do Público era “Tróia, proprietários impedidos de construir processam o Estado”.

Uma das histórias na base desta manchete é simples: uma pessoa compra, ao Estado, uma propriedade com direitos de construção. Quando pretende exercer esses direitos – que evidentemente influenciaram o preço pelo qual o Estado vendeu a propriedade – descobre que afinal o Estado suspendeu esses direitos e, na verdade, não pode construir, pelo menos nos próximos dois anos em que o Estado estará a fazer um plano.

O Ministério do Ambiente (declaração de interesses: onde trabalho) argumenta que está a “proteger as pessoas, o território, os bens e os valores naturais presentes”.

Até aqui, nada de especial, tudo legítimo, o problema é que o Estado parece ter esquecido uma questão central: a confiança das pessoas comuns nas instituições do Estado também é um valor público de primeira grandeza.

Se o Estado mudou de ideias – e às vezes tem boas razões para o fazer – retira os direitos anteriormente concedidos e, naturalmente, paga as indemnizações que tiver a pagar.

O que não pode fazer é o que está a fazer: suspende os direitos e diz que, algures no futuro, se essa suspensão passar a definitiva, talvez pague umas indemnizações que ainda vai discutir.

Esta história está muito longe de ser única: ainda recentemente um primo meu comprou uma propriedade com um pedido de informação prévia que previa a construção de uma casa com 600 metros quadrados, numa área onde existem infra estruturas, outras construções perfeitamente licenciadas, etc..

Como não queria uma casa tão grande, pediu uma alteração de projecto, uns metros ao lado – evitava abater umas árvores, incluindo sobreiros – e com metade da área. Agora está metido numa camisa-de-onze-varas porque o pedido anterior, que lhe garantia os direitos de construção, já não se aplica ao novo projecto e o Estado resolveu dizer, ao abrigo da legislação sobre fogos, que não pode aprovar construções naquele local. Entretanto, com as demoras de decisão do Estado, o primeiro pedido parece ter perdido a validade.

Aquilo a que hoje se chama ordenamento do território é um novelo kafkiano de regras, regrinhas e regretas, em que ninguém se entende, de tal forma que o próprio Estado sentiu necessidade de arranjar modelos especiais para se libertar do colete-de-forças em que se meteu.

No tempo de Cavaco Silva criaram-se os projectos estruturantes, mais tarde, Projectos de Interesse Nacional, hoje nem sei como se chamam, mas o processo mantém-se: para projectos que o Estado considera suficientemente relevantes, os promotores podem seguir procedimentos diferentes de acompanhamento do licenciamento daqueles que estão ao alcance do Zé Ninguém.

Há anos, era eu coordenador da elaboração de um Plano de Ordenamento de uma área protegida, e uma pessoa ponderava dedicar-se à pastorícia. Havia um problema que não conseguia resolver: a legislação urbana o impedia de construir um estábulo, e eventual queijaria, dentro do perímetro urbano, e as regras previstas para o Plano em causa proibiam a construção fora dos perímetros urbanos.

Do ponto de vista da gestão da área protegida, a existência de pastorícia era uma bênção permitindo uma gestão sustentável com efeitos muitos positivos do ponto de vista de conservação – ajudava na conservação de vários habitats, alguns deles prioritários, como os prados calcáreos com orquídeas, para além dos reconhecidos efeitos positivos na conservação da população de gralha-de-bico-vermelho – portanto era preciso encontrar uma solução.

A solução evidente é criar excepções, mas essas excepções, se assentes na pura discricionariedade, são uma porta aberta para a corrupção e para a corrosão da confiança das pessoas comuns nas instituições do Estado.

O actual absurdo do ordenamento do território está cheio deste tipo de excepções, incluindo a coisa extraordinária da suspensão dos planos para se poder autorizar o que o plano não autoriza.

O que fizemos foi copiar a solução que existe na Directiva Habitats: há excepção sim senhora, mas a aplicação dessa excepção está balizada no seus fundamentos e no processo de decisão.

A excepção foi condicionada à verificação sucessiva de três condições:

  1. Falta de alternativa;
  2. Efeitos positivos para a gestão da área protegida;
  3. Compensação de eventuais efeitos negativos.

E a autorização passou a ter de incluir um parecer positivo do conselho consultivo da área protegida – para garantir consenso social e evitar dependência exclusiva da vontade de poucas pessoas – e passou a ter um processo prévio de discussão pública – para evitar a criação opaca de factos consumados.

A Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional não queria aceitar este conjunto de regras porque entendia que o plano deveria prever tudo o que poderia acontecer nos dez anos seguintes e ter normas absolutamente fechadas, de modo a que toda a gente soubesse exactamente com o que podia contar.

E é esta mentalidade, a de que o Estado consegue prever o futuro e a de que o Zé Ninguém é um malandro que é preciso controlar de todas as maneiras, que está na base de um sistema de ordenamento que, em sociedades abertas, levaria forçosamente à mais que justa revolta.

Na base de tudo está o simples desrespeito do Estado pelo Zé Ninguém e das mais obtusas aplicações do direito que conheço, já seria tempo de mudar e pôr as pessoas no centro do ordenamento do território, e não o Estado.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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