Os Censos censurados

Ainda há gente que não percebe que conhecer o outro é a melhor via para a tolerância. E que não compreende que um dos grandes inimigos da Democracia e da Liberdade é a ignorância.

Quando eu era pequenina (em idade), fiz uma campanha doméstica para que os meus pais não respondessem aos Censos. Foi nos de 1991, os primeiros de que tenho memória. Lembro-me de dizer que ninguém tinha de saber quantos televisores tínhamos em casa. Justiça poética: hoje, já adulta e a fazer investigação, queixo-me do facto de o recenseamento da população e da habitação só se realizar de 10 em 10 anos e de me faltarem dados.

Na apresentação dos Censos 2021, diz o INE que ao “longo de mais de 150 anos os Censos têm colocado à disposição da sociedade o maior retrato estatístico de Portugal. Os organismos públicos, as entidades privadas e os cidadãos em geral, reconhecem a utilidade da informação censitária, enquanto fator essencial para a planificação de serviços ou para a definição de políticas em áreas como a educação e a saúde”.

Não estou tão optimista quanto o INE. Ainda no meu último artigo, recomendava ao Bloco de Esquerda que os fosse consultar, porque parecem ignorá-los. E são vários os exemplos de medidas adoptadas ou propostas, por diferentes órgãos de soberania e por diferentes cores partidárias, sem qualquer base estatística, procurando resolver problemas que não se conhecem, que não estão bem definidos, que não se encontram quantificados, nem descritos nas suas características, causas, implicações e dimensão.

Ora, sem informação não existem boas políticas públicas. Ideia em que tenho repetidamente insistido e que deu título a um artigo de Susana Peralta, escrito a propósito dos acontecimentos no Bairro da Jamaica. Nele lê-se que “continuamos com a aberrante proibição de recolha de dados étnicos, o que nos tem permitido assobiar para o lado naquela que é, provavelmente, uma das dimensões de desigualdade mais gritantes da sociedade portuguesa”.

De tempos a tempos, a sociedade portuguesa é abalada por algum episódio que a faz retomar o debate sobre o facto de ser (ou não) racista, mas a discussão acaba por ser maioritariamente estéril, porque nos faltam dados, o que a deixa no domínio do “achismo”.

Por isso, quando o Governo decidiu, no ano passado, criar um grupo de trabalho para estudar a possibilidade de incluir no próximo recenseamento uma questão sobre a origem étnica ou racial, fiquei satisfeita. E mais satisfeita fiquei quando, em Março passado, esse grupo entregou o seu relatório, que recomenda que os próximos Censos tenham uma questão sobre a “origem e/ou pertença étnico-racial”. Conclusão a que se chegou depois de ponderados vários elementos, nomeadamente um inquérito realizado pela Universidade Católica para conhecer a opinião dos portugueses sobre o assunto (que consta do anexo 6 daquele relatório).
E se a maioria dos inquiridos se mostrou favorável à recolha de informação estatística de base étnico-racial, eu não deixei de ter a oportunidade de trocar argumentos com várias pessoas que defendem a posição contrária.

Como o primeiro parágrafo deve ter deixado claro, a defesa da privacidade é-me bastante cara e idiossincrásica. Tratando-se da origem e/ou pertença étnico-racial, não creio que haja qualquer ameaça a esse nível. Não consideramos que ter o sexo do respondente seja uma invasão da privacidade. Que eu sou mulher é coisa bastante óbvia, observa-se sem necessidade de perguntar. O mesmo sucede com o facto de ser caucasiana. Portanto, comparações com perguntas sobre a orientação sexual são descabidas.

Em todo o caso, o grupo de trabalho propôs que a resposta fosse voluntária, à semelhança do que já acontece com a variável religião (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 226/2009), e de auto-classificação, estando incluídas categorias mistas e opções de resposta em aberto, para contemplar as situações em que as pessoas não se revêem em nenhuma das denominações apresentadas. Além de, obviamente, todas as respostas – a esta e às outras perguntas – estarem sujeitas, através da Lei n.º 22/2008, ao segredo estatístico. Portanto, confundir a inclusão deste item nos Censos com as Leis de Nuremberga é tão-só isso: confusão.

Aliás, a resposta facultativa tem de resultar de um consentimento informado, em que se explica aos respondentes que o objectivo da pergunta é unicamente o de identificar eventuais desigualdades e discriminações com base na etnia, ao mesmo tempo que se elucida tratarem-se de categorias sociais e não biológicas ou genéticas.

Ora, para quem não reparou, os Censos estão cheios de categoriais sociais. É percorrer a lista de indicadores e encontrar coisas como “grupo socioeconómico do titular do alojamento”, “tipo de família clássica” ou “idosos”. Tudo conceitos de génese sociológica. E faz sentido que assim seja porque os Censos são um retrato da sociedade. Logo, têm de recorrer a noções que a sociedade reconhece e/ou valoriza.

Um retrato, uma fotografia: os Censos revelam a realidade, não a criam. Se para a sociedade a cor da pele ou o formato dos olhos forem irrelevantes, os Censos vão mostrá-lo. Vão mostrar que a etnia não influencia o rendimento médio, as condições das casas em que se mora, a taxa de abandono escolar, a situação perante o emprego, etc. Se assim não for, há que partir desses dados e fazer investigação, distinguir onde é que há apenas correlação, onde é que encontra causalidade. E se essa causalidade é discriminação. E, se for discriminação, agir sobre ela – mas com base em factos, não em sensações.

Aqui foi muito engraçado ver pessoas a recear que este seja o tipo de informação legitimador de atitudes racistas. Porque o argumento só faz sentido no pressuposto de que os Censos irão confirmar uma série de estereótipos preconceituosos que se tem sobre as comunidades não caucasianas. O que é uma ideia genuinamente racista. Fez-me lembrar a recusa de Faria de Oliveira em revelar os grandes devedores porque isso iria minar a confiança na banca. Ou Rui Pedro Soares, na comissão de inquérito parlamentar sobre a alegada intervenção do Governo no plano de compra da TVI por parte da PT, a não responder para não se incriminar.

Embora o estudo da Universidade Católica me deixe a acreditar que são minoritárias as pessoas que preferem não ter dados sobre este assunto, não deixo de ficar preocupada por ainda haver gente que encontra na informação uma ameaça. Que identifica desconhecimento com felicidade. Que não percebe que conhecer o outro é a melhor via para a tolerância. E que não compreende que um dos grandes inimigos da Democracia e da Liberdade é a ignorância.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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