Os partidos mudaram de sexo

Para verem como isto anda tudo ligado, há um óbvio paralelo entre a configuração do atual espectro partidário e as propostas de alteração à lei da mudança de sexo para efeitos legais e administrativos

Para quem tenha andado menos atento, o aspeto essencial que os projetos de legislação, apresentados pelo Governo, pelo Bloco de Esquerda e pelo PAN – Pessoas-Animais-Natureza, têm em comum, é que pretendem que deixe de ser necessário um relatório médico (a lei vigente desde 2011 exigia-o, através do que se veio convencionar ser uma comissão multidisciplinar de especialistas) para fundamentar o requerimento que os maiores de 16 anos apresentem ao Registo Civil solicitando a mudança se sexo, nome ou fotografia nos documentos de identificação oficiais. Por outras palavras, a ser aprovada nesta forma, a legislação passaria a permitir a qualquer cidadão maior de 16 anos, dirigir-se à respetiva Conservatória e mudar de sexo para efeitos legais, sem quaisquer outras formalidades.

Antes que a brigada do politicamente correto me condene à lapidação, quero, desde já deixar claro que apoio, sem reservas, todas as formas de progresso legislativo que minore o sofrimento e descriminação de todos aqueles e aquelas que tenham uma qualquer forma de disforia de género, incluindo, a mudança de sexo administrativo, anatómico ou psicossociológico. Acontece que a atual lei já acautela, em minha opinião de forma adequada, estas possibilidades. Porquê, então, este afã para a alterar decorridos apenas quatro anos do início da sua aplicação?

Por motivos políticos, evidentemente. O PS tem, volta e meia, de dar aos seus parceiros de governação, e neste caso concreto ao BE, um rebuçado para que estes possam argumentar junto das suas respetivas cliques de interesses que continua a valer a pena apoiar este governo apesar das magras concessões que em matérias mais ‘sérias’, digamos, o PS tem feito à esquerda radical. Esta barganha partidária é difícil de aceitar, mas fácil de entender. Escusavam era de tentar legislar de forma tão atabalhoada e irrefletida.

Não vou aqui discutir inúmeros aspetos das propostas que são absurdamente irrazoáveis ou impossíveis de dirimir no dia-a-dia. E acreditem que os há às dezenas, desde o picaresco (utilização de casas de banho ou vestiários), ao cruel (impedimento generalizado do tratamento cirúrgico de crianças com ambiguidade ou deformação anatómica genital até à altura em que a própria criança determine o seu género), até ao iníquo (colocar na exclusiva e solitária dependência dos conservadores do registo civil um eventual indeferimento do requerimento).

Interessa-me, sobretudo, sublinhar que os impactos da determinação do sexo para efeitos legais estão longe de ser irrelevantes. Pelo menos por enquanto, o sexo legal dos cidadãos tem implicações práticas e bem reais no dia-a-dia que exigem que a eventual mudança do mesmo não dependa somente da vontade própria sem qualquer validação por terceiros, inclusivamente dos próprios pais de menores que o venham a requerer.

Talvez um exemplo ajude a entender melhor. Se estas propostas vierem a vingar, nada me impedirá de requerer a mudança para o sexo feminino e passar a contar para o preenchimento das quotas de mulheres nos órgãos de administração de empresas (públicas e cotadas) que entrarão em vigor ainda este ano. Ninguém pensou nisso? O assunto é importante demais para ser submergido nesta trapalhada apressada de negociatas partidárias e de tiques discursivos.

O que tem isto a ver com o atual espetro partidário? Se pensarem bem, a identidade de género dos nossos partidos é, no mínimo, ambígua.

À direita, partidos acusados de serem perigosos liberais (pleonasmo) presidiram sobre o período de maior aumento de impostos de que há memória da história recente de Portugal. À esquerda, partidos que são acérrimos defensores de um maior papel do Estadia na sociedade e na economia, apresentam consecutivamente, as menores taxas de investimento público deste século (1,5% em 2016, estimando-se 1,7% para 2017, isto se as cativações de fim de ano não vierem a reduzir esta taxa ainda mais, visto que nem sequer há eleições em 2018).

Portanto, a direita aumentou o peso fiscal do Estado e a esquerda está a mostrar que o investimento público é irrelevante (quem sabe, prejudicial) ao crescimento económico. É o mundo ao contrário e Keynes às voltas no túmulo.

Talvez seja boa altura para os partidos irem à conservatória mudar de sexo.

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