Os recados políticos de Centeno são tiros de ‘Pólvora Seca’
Parece que o regulador, em vez de se dedicar a análises de política económica objetivas, abordando quer os prós quer os contras das medidas, se foca apenas nos contras e nas manchetes de (tele)jornal.
Já todos perceberam que o governador do Banco de Portugal (BdP), Mário Centeno, quer aproveitar ao máximo os últimos meses do seu mandato para deixar recados políticos. Desta vez, no Boletim Económico de dezembro (BE-dez) do BdP, sinaliza-se um regresso do défice público, um aumento da desigualdade de rendimentos com o novo IRS Jovem e um baixo efeito de um corte de IRC.
Nos três casos, só se focam os aspetos negativos ou pessimistas das políticas subjacentes, não os principais efeitos positivos que estiveram na base da sua adoção, o que leva a conclusões também negativamente enviesadas, reduzindo a credibilidade da análise. Infelizmente, parece que o regulador, em vez de se dedicar a análises de política económica objetivas, abordando quer os prós quer os contras das medidas, se foca apenas nos contras e nas manchetes de (tele)jornal.
Quando questionado pelos jornalistas se está a ser uma ‘força de oposição’, Centeno esconde-se nos estatutos do BdP de que está a praticar a função de ‘aconselhamento’, o que deixa margem para interpretações. A verdade é que os Portugueses (e eu próprio) sempre viram as posições do BdP como isentas e, se os jornalistas fazem a pergunta, já se está a ver que isso se perdeu, o que é pena.
Apesar de partilhar de algumas das preocupações subjacentes, mas por razões distintas, com este artigo pretendo mostrar, pedagogicamente, um ‘lado B’ do BE-dez do BdP que foi omitido.
Divido a análise em três partes, correspondentes a cada um dos recados.
1. O anúncio de regresso do défice público já em 2025 poderá ser ‘manifestamente exagerado’
Recordo que a Comissão Europeia validou o Plano Estrutural Orçamental de Médio Prazo do Governo há pouco tempo e nada de muito significativo mudou desde então. Mais recentemente, a UTAO e o Conselho de Finanças Públicas apontaram várias folgas embutidas no Orçamento de Estado de 2025 (OE-25), sobretudo cativações, que até poderão permitir um excedente acima de 0,3% do PIB. Assim, não admira que o Primeiro-ministro tenha dito que a previsão do BdP de um défice de 0,1% do PIB em 2025 está em “contramão” com outras entidades, mas admite um “acerto” ao longo da execução orçamental e um esforço para “comportar” as medidas aprovadas pela oposição.
Faço notar que a variação anual do indicador de despesa líquido seguido pela Comissão Europeia nas novas regras orçamentais é substancialmente mais elevada no BE-dez do BdP do que no Plano com que o Governo se comprometeu perante a União Europeia (UE), pois de outra forma não seria possível o BdP estimar o regresso de um défice público já a partir de 2025.
Partilho da preocupação de Centeno quanto ao aumento da despesa pública. Contudo, mais do que a sua evolução conjuntural, o verdadeiro problema reside no facto de que, sem uma reforma profunda do Estado, será impossível reduzir estruturalmente o peso da despesa pública corrente no PIB. Esta redução é indispensável para alcançar uma descida mais expressiva e sustentada da carga fiscal – essencial para atrair investimento privado, uma visão que, aliás, difere da defendida por Centeno – e para aumentar a despesa em investimento público nacional, contrariando a baixa esperada de fundos da UE após 2026.
Se queremos ser ambiciosos no que respeita ao crescimento económico e à melhoria do nível de vida – algo que, aparentemente, não é uma prioridade para o governador, que é muito cético dos benefícios de uma menor baixa fiscal, em particular do IRC, como decorre do ponto 3 abaixo –, precisamos urgentemente dessa reforma do Estado, que permita ganhos reais de eficiência na despesa pública. No entanto, essa reforma não se vislumbra no OE-25 nos moldes necessários. Aliás, vale recordar que, durante o mandato de Centeno como ministro das Finanças, caminhamos no sentido oposto, com mais despesa corrente acomodada por máximos sucessivos de carga fiscal e por uma forte cativação do investimento público, que contribuiu para a degradação evidente dos serviços públicos a par com uma má gestão, penalizando sobretudo as famílias de menores rendimentos, que deles mais precisam.
2. Novo IRS jovem: foco na perda de capacidade redistributiva em vez do desincentivo às qualificações
Numa das caixas do BE-dez do BdP, é feita uma análise a demonstrar uma ligeira perda de capacidade redistributiva com o novo IRS Jovem alargado, o que é natural porque, como o IRS é progressivo e a dedução do IRS jovem é proporcional, o benefício em valor absoluto será maior para os jovens com maiores rendimentos, o que é minorado pela existência de limites absolutos às deduções. Nada de novo em termos de conclusões, portanto, apenas são apresentadas estimativas a esse respeito.
O acompanhamento do impacto do IRS Jovem, que o Conselho Económico e Social considera importante e eu também, deve focar-se antes no incentivo ao início da vida ativa sem a escolaridade mínima – pois é eliminado como critério de acesso o 12º ano –, que se torna assim ‘letra morta’, e a perda de eficácia e aumento do custo da medida precisamente por não se focar nos mais qualificados, em maior risco de emigrar, como defendo. Como é sabido, prefiro o IRS Novo Talento, um regime muito mais justo e focado, que se traduz num incentivo unificado e abrangente a novas qualificações superiores – para jovens, menos jovens, emigrantes e imigrantes –, aplicável sobre rendimentos de trabalho nos anos após a conclusão dessas formações, substituindo os atuais regimes distorcionários dedicados a segmentos específicos (jovens, emigrantes e imigrantes), não acessíveis a todos os contribuintes.
3. Impacto do IRC no Crescimento: Perspetiva do BdP vs. FFMS e Literatura Económica
3.1. Estudo do BdP com pressupostos muito restritivos e alguns irrealistas
Sem entrar em detalhes técnicos, é evidente que o estudo sobre o impacto de uma redução do IRC no crescimento económico, inserido no BE-dez do BdP, adota uma abordagem complexa, sustentada em pressupostos restritivos que reduzem o impacto estimado. Baseado no modelo e metodologia do artigo de Júlio e Maria (2022), publicado na Revista de Estudos Económicos do BdP, conclui que o efeito no crescimento económico é meramente residual e, mesmo assim, depende de condições pouco realistas.
- “(…) a atividade aumenta em torno de 0,1% no longo prazo se a redução da taxa efetiva de IRC for totalmente reinvestida nas empresas (…). A decisão de reinvestimento (…) encontra-se na esfera de decisão da empresa, pelo que uma alternativa à redução estatutária do IRC é criar incentivos diretos à capitalização das empresas e assim ao reinvestimento da redução da carga fiscal (…)”.
Esta conclusões e os pressupostos subjacentes são muito redutores e enviesam o leitor a considerar que são preferíveis incentivos à capitalização do que uma redução das taxas estatutárias do IRC.
Considero que não deve haver enviesamentos para o endividamento, como sucedeu durante muitos anos – contribuindo para a quase bancarrota do País em 2010 –, mas enviesamentos no sentido da capitalização também podem ser prejudiciais, pois limitam o crescimento dos negócios por via da alavancagem financeira. Ou seja, deve haver uma neutralidade fiscal entre divida e capital, e seria mais interessante terem feito a análise nessa perspetiva, pois nesta altura já devemos estar perto dessa neutralidade, depois dos incentivos à capitalização terem sido melhorados sucessivamente desde a vinda da troika.
Recordo que, nas negociações para o OE-25, o PS defendeu reduções condicionais do IRC, uma delas o reforço da dedução por lucros retidos e reinvestidos (melhorada sucessivas vezes) – a outra, condicional ao aumento de salários, é muito pior em termos atratividade fiscal –, enquanto o Governo queria uma descida de dois pontos percentuais (p.p.) na taxa estatutária. Acabamos por ter uma combinação das duas abordagens no OE-25, como é sabido – com uma baixa de apenas 1 p.p. nas taxas de IRC –, mas esta caixa do BE-dez do BdP mostra-se claramente em favor da abordagem de capitalização preconizada pelo PS e em desfavor da preconizada pelo Governo, tomando uma posição com interpretação político-partidária.
Por outro lado, o impacto positivo no crescimento é apenas marginal e só ocorre quando a redução da taxa efetiva de IRC é totalmente reinvestida nas empresas o que, além de muito restritivo – como argumento abaixo –, é irrealista, pois assume que os acionistas nunca serão remunerados. Isto porque só o investimento, pelo seu caráter reprodutivo, beneficia o crescimento económico no longo prazo no modelo (não o consumo), como é habitual, mas é omitido que alternativas ao reinvestimento, como distribuição de dividendos, podem levar a poupanças dos acionistas mais tarde transformadas em investimento (por exemplo, depósito no banco depois emprestado pelo banco a empresas)
“A taxa estatutária de IRC em Portugal varia conforme a dimensão, lucro e localização da empresa. Embora (…) seja uma das mais elevadas da área do euro, ela aplica-se apenas a um número (…) reduzido de empresas. (…) As receitas (…) do IRC desempenham um papel essencial no financiamento das despesas públicas (…). (…) qualquer alívio fiscal do IRC deve ser avaliado dentro do espaço orçamental disponível. Além disso, os impactos macroeconómicos de longo prazo permanecem incertos”.
“No modelo, a perda de receita pública gerada pela redução (…) da taxa efetiva de IRC deve ser compensada no longo prazo para estabilizar a dívida pública em percentagem do PIB. São considerados três instrumentos alternativos (…):
(i) um aumento dos impostos sobre o trabalho,
(ii) um aumento dos impostos sobre o consumo,
(iii) uma redução do consumo público.
Em todos os cenários analisados, sem reinvestimento da poupança fiscal, a atividade económica cai na sequência de uma redução do IRC (…). Se os lucros líquidos adicionais gerados pela redução da taxa efetiva de IRC forem integralmente distribuídos pelas famílias e não reinvestidos, verifica-se uma redução do investimento e da atividade económica (…)”. “Entre as três alternativas de compensação da perda de receita fiscal, a redução do consumo público gera um impacto menos negativo na atividade (…)”.
Mais grave, toda a abordagem se foca numa análise fiscal estática de curto prazo, muito redutora, de que a baixa das taxas de IRC beneficia sobretudo as empresas existentes e de maior dimensão, o que é natural pois são as que têm mais lucros e pagam mais impostos, sendo, por isso, um argumento que vale para qualquer imposto. Ignora que uma baixa das taxas estatutárias, além de criar margem para mais investimento às empresas já existentes, pode atrair investimento de empresas estrangeiras, ou incentivar o nascimento de startups de base nacional – aumentando o número de empresas e o emprego –, uma análise fiscal dinâmica, de médio e longo prazo, que é a principal justificação da medida e do seu impacto.
Ao nível da receita de imposto, a conhecida curva de Laffer mostra que, a partir de determinado ponto, um aumento da taxa de imposto diminui a receita cobrada. Tendo Portugal a 2ª maior taxa efetiva de IRC da UE, é bem provável que estejamos na parte descendente da curva de Laffer no IRC e uma redução significativa da taxa efetiva leve a uma maior cobrança desse imposto, por redução da evasão e fraude fiscal. O estudo ignora, nomeadamente, que há empresas que têm mudado a sua sede fiscal para outros países com menos tributação e que poderão voltar com uma redução significativa das taxas de IRC, que pode ainda baixar a fraude fiscal, nomeadamente em empresas de menor dimensão que poderão estar a esconder lucros, nomeadamente as empresas ‘zombie’, que sobrevivem sempre com prejuízos. Ou seja, é possível que a baixa de taxas de IRC, dependendo da magnitude, não reduza a receita fiscal, o que é ignorado pelo estudo do BdP, bem como pelo da FFMS.
Entre as alternativas de compensação da receita fiscal, a redução do consumo público é a que gera menos impacto negativo, por comparação com o aumento de impostos, o que é diferente do segundo estudo.
Faço notar que, mesmo que haja perda de receita, nenhum dos estudos contempla a hipótese mais benigna, que defendo, de que a compensação seja faça de forma virtuosa e sem custos económicos, por via de uma reforma do Estado que baixe o peso da despesa corrente no PIB por ganhos de eficiência e acomode essa eventual menor cobrança de IRC, bastando para tal que o rácio de novas entradas de funcionários públicos por cada saída seja inferior a 1. Tal é compatível com a hipótese de estabilização do rácio da dívida pública do modelo e não gera uma diminuição da despesa agregada, pois os funcionários que não entrarem no setor público estarão no setor privado, admitindo que não emigram.
3.2. FFMS e literatura económica evidenciam um efeito relevante da baixa do IRC sobre o crescimento
Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), também deste ano, intitulado “O Impacto do IRC na Economia Portuguesa”, conclui que:
- “Um primeiro exercício (…) consistiu na simulação do efeito de uma redução de 7,5 p.p. da taxa deste imposto nas principais variáveis macroeconómicas (…). A simulação aponta para um aumento do PIB em cerca de 1,44% no curto prazo (dois anos após a reforma), e 1,4% no longo prazo (após dez anos) (…). Adicionalmente, os resultados apontam para que os salários reais melhorem (…), aumentando em 1,8% no longo prazo (…). (…) uma redução acentuada do IRC deverá estar associada a um crescimento relevante do PIB português. Um segundo exercício procurou captar o impacto da perda de competitividade fiscal da economia portuguesa ao longo dos anos. A tendência histórica da maioria dos países da Zona Euro e da OCDE (…) tem sido de redução da carga fiscal sobre as empresas. Portugal não tem (…) acompanhado essa tendência (…). (…) simulou-se o efeito associado a uma redução do IRC na Zona Euro e no resto do mundo que não é acompanhada por Portugal. Os resultados apontam para uma diminuição do consumo agregado e do investimento privado que impulsionam uma resposta negativa do PIB português (…)”. “O modelo aponta no sentido de que as reformas que eliminem a progressividade do imposto tenham também impactos substanciais de longo prazo”. “Neste sentido, (…) é recomendável uma redução geral da taxa de IRC para todas as empresas, bem como uma eliminação das derramas estaduais e municipais, acompanhada das necessárias medidas de ajustamento orçamental [neste caso, face às alternativas estudadas e às assunções do estudo, o aumento dos impostos sobre o consumo é a via preferida, até por incentivar à poupança]. Estas medidas de redução do IRC permitiriam (…) reforçar a competitividade fiscal da economia portuguesa face ao exterior e (…) simplificar o IRC”.
Estes resultados, que adotam uma abordagem claramente menos restritiva e, por isso, mais realista do que a do estudo do BdP, são diametralmente opostos. Demonstram um impacto bastante relevante da redução das taxas de IRC no crescimento económico a curto, médio e longo prazo, bem como nos salários reais dos trabalhadores. De forma consistente, evidenciam também o impacto negativo sobre o crescimento de Portugal não ter acompanhado a tendência de desagravamento fiscal no restante espaço europeu, particularmente nas economias de leste, muitas das quais já nos ultrapassaram em nível de vida, em grande parte devido à sua maior competitividade fiscal. Estes resultados alinham-se muito mais com a literatura económica – tanto teórica quanto empírica – sobre crescimento económico e baixa do IRC.
A redução da derrama estadual é também apresentada como tendo um impacto forte, pois limita muito a atração de investimento estruturante, conforme evidenciei numa crónica anterior. Já o corte das derramas municipais implicaria uma alteração da Lei de Finanças Locais e do modelo de financiamento atual que não está agenda, que eu saiba, até porque teremos eleições autárquicas para o ano.
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