Período experimental ou contrato a prazo encapotado?

Portugal já não tem um problema de emprego, mas de qualidade do emprego: salários baixos e precários. As alterações à Lei Laboral vão a debate no Parlamento. É o “decreto dignità” à portuguesa.

A lei laboral em Portugal não é um empecilho à contratação. É o próprio primeiro-ministro quem o diz: “legislação laboral não é um entrave ao crescimento do emprego”. Então porquê mudar a lei? Porque o problema do mercado de trabalho não é o emprego, é a qualidade do emprego: salários baixos e precários.

Durante os anos de crise em Portugal, a troika fez no mercado de trabalho aquilo que Peter Hartz fez na Alemanha uma década antes durante o reinado de Gerhard Schröder e que ajudou ao milagre económico alemão. A troika exagerou e chegámos a situações caricatas em que um contrato a prazo podia ser renovado durante seis anos. O conceito de “a prazo” ganhou uma elasticidade indecente.

Chegou a altura de arrepiar caminho, sem desfazer aquilo que de bom foi feito para aumentar a competitividade da economia e das empresas. O ministro Vieira da Silva apresentou um mega pacote de combate à precariedade com 27 medidas, com o objetivo de recuperar aquilo que é o espírito dos contratos a prazo: contratos de substituição e para responder a necessidades temporárias. Estas serão talvez as medidas mais relevantes:

  • A duração máxima dos contratos a prazo baixa de três para dois anos;
  • A duração máxima dos contratos a termo incerto (muito usados na construção) desce de seis para quatro anos;
  • Ser jovem ou desempregado de longa duração deixa de ser motivo para contratar a prazo;
  • Há uma nova taxa adicional à TSU para penalizar o excesso de rotatividade;
  • E há um limite às renovações dos contratos temporários.

Algumas destas medidas, curiosamente, são iguais àquelas que foram apresentadas esta semana em Itália por Luigi Di Maio do Movimento 5 Estrelas, num pacote que ficou conhecido como o “decreto dignità”. Itália tem um problema parecido com Portugal que é a excessiva segmentação do mercado laboral. Segundo a Reuters, nos últimos 12 meses Itália criou 437 mil empregos temporários e apenas 5 mil permanentes.

Em Portugal, segundo números de Vieira da Silva, das pessoas que entram no mercado de trabalho ou regressam após uma longa ausência, “80% a 85% fazem-no através de contratos a prazo”. Já agora, convém não esquecer que os trabalhadores precários ganham, em média e para as mesmas funções, menos 15 a 20% do que um contratado sem termo. Num país onde o salário médio já é metade do da União Europeia, a precariedade é um fardo demasiado pesado para carregar.

Para colocar na lapela o pin da concertação social, o Governo teve de fazer algumas cedências aos patrões, sendo talvez a mais relevante o alargamento do período experimental de 90 para 180 dias para jovens e desempregados de longa duração.

É talvez a medida mais polémica deste pacote laboral, já que vai no sentido contrário ao das restantes medidas que pretendem combater a precariedade. Se queremos combater a precariedade, por que razão colocar um jovem ou um desemprego à experiência numa empresa durante seis meses? Estes são os argumentos do Governo:

  • 180 dias é o nível que está a ser discutido pela Comissão Europeia como valor de referência;
  • Grande parte dos trabalhadores hoje em dia já está abrangido pelos 180 dias ou mais, sobretudo licenciados e trabalhadores que exerçam cargos de complexidade técnica;
  • O último e o mais forte dos argumentos é que 85% dos trabalhadores que entram ou reentram no mercado após longa ausência fazem-no através de contratos a prazo e, nem sequer, são abrangidos pelo período experimental. Diz Vieira da Sila que “o verdadeiro período experimental que existia para as empresas – e isso é errado – era o contrato a prazo”.

O problema e a perversão de alargar o período experimental é que se antes as empresas usavam o contrato a prazo como período experimental encapotado, agora podem ser tentadas a usar o período experimental como contrato a prazo encapotado. Com a agravante de, no final do período experimental, não existir direito a indemnizações ao contrário do que acontece nas cessações dos contratos a prazo.

Além disso, a norma pode e vai levantar problemas de constitucionalidade. Já tinha sido chumbada em 2008 quando foi apresentada pelo próprio Vieira da Silva, embora na altura o alargamento tivesse um caráter universal. No entanto, o Tribunal Constitucional considerou que violava o princípio da segurança no trabalho. Agora, ao abranger apenas os jovens e os desempregados de longa duração levanta outras questões de legalidade, como o princípio da justa causa ou da igualdade. Isto porque o período experimental deveria servir para as empresas e trabalhadores se conhecerem e chegarem à conclusão se querem ou não prolongar o vínculo sem termo, e não deveria descriminar em função do tipo de trabalhador. Os próprios prazos que já existem na lei (90, 180 ou 240 dias) têm a ver com a função e não com o tipo de trabalhador.

A norma tem uma outra aberração, já que alarga o período experimental para jovens à procura do primeiro emprego, mas o conceito técnico do “trabalhador à procura do primeiro emprego” é aquele que nunca foi contratado sem termo. Ou seja, uma pessoa pode já ter tido mais de 100 empregos a prazo, mas aos olhos da lei continua à procura do primeiro e vai ter de se sujeitar a um período experimental de seis meses.

Por fim, é importante não esquecer que os contratos a prazo têm uma norma travão que impede que o empregador esteja sucessivamente a contratar diferentes trabalhadores para o mesmo posto de trabalho. Por exemplo, após o fim de um contrato a termo, a empresa só poderá chamar outra pessoa para as mesmas funções (sendo que a primeira tem a preferência) após um período equivalente a um terço da duração do contrato anterior, incluindo renovações. No caso do período experimental, pelo menos como está desenhada a proposta do Governo, não existe essa norma travão, ou seja, permite que as empresas façam sucessivas denúncias do contrato sem termo durante o período de experiência, o que na prática pode significar um entra e sai constante da empresa de trabalhadores que estão a desemprenhar funções permanentes.

Resumindo, o pacote para combater a precariedade de Vieira da Silva é válido e vai ajudar a mudar genuinamente a vida dos trabalhadores. Mas alargar simultaneamente o período experimental é criar um alçapão para que tudo continue na mesma.

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