Um vírus em digressão pelo Mundo é uma abstracção, uma irrealidade, uma ficção, uma infelicidade.

Não vou falar de economia. Não vou falar de política. Nunca vivi numa cidade ocupada. Nunca fiz parte de um país ocupado. Não sei o que é o quotidiano de um Continente ocupado. Mas sinto que as ruas meio desertas entre o branco sujo e o amarelo pálido indicam a circulação de um medo calado.

Tento não pensar na ameaça invisível, pois que pensar é destruir o sossego, a segurança, pensar é decompor a normalidade aparente numa ameaça permanente. O vírus circula confortável e incógnito, cerca tudo e todos como uma nuvem de pó. A inconsistência do céu, a narrativa política, a etiqueta respiratória, a distância social mínima, tudo são sombras que descem das infinitas janelas e apontam para mim, e apontam para cada um, na sequência aleatória de uma pandemia.

O covid-19 é o repugnante mensageiro da nossa vulnerabilidade. Com os relógios públicos parados, com as lajes limpas a brilhar, a pandemia começa finalmente a suprimir o movimento elástico da respiração. A crise é cega e sonâmbula, por essa razão não há justiça ou injustiça na transparência das vítimas e na opacidade dos espectadores. Estamos todos na aresta angular da incerteza. Bem-vindos ao admirável velho Mundo.

Entramos assim numa magnífica experiência social. Podemos usar máscaras assinadas por designers, podemos lavar as mãos num gesto místico de oferenda a um Deus desconhecido, mas a incerteza e a traição separa cada um de nós, altera os gestos simples, automáticos, rotineiros, em que cada rosto representa uma ameaça e só o isolamento do convívio social traz o desconforto de uma segurança precária. O vulto dos móveis no interior de uma casa é o que resta das caras e dos gestos físicos das pessoas.

Na era digital talvez a experiência seja outra. O Mundo real tomado pelo vírus tende a ser substituído pelo Mundo virtual asséptico e tecnológico. A crise revela a ubiquidade dos meios digitais, uma intimidade decisiva que substitui a verdadeira interacção social.

Estamos no início, mas a grande era da Globalização impõe o isolamento do indivíduo pela ameaça lúcida de um vírus que espalha a estética do desafio e do desalento. Protegidos pela luz fria de um écran, haveremos de sentir a ausência dos outros, uma súbita desvalorização do capital social, até que tudo retome a aparente futilidade da normalidade. Ou talvez não. Ou talvez esta crise seja a expressão de uma coisa contrária à nossa natureza e vocação. Ou talvez esta crise seja a violação do direito à nossa insinceridade social. Isolados, dependemos do outro. Integrados, dependemos do outro. Vamos aprender muito na variedade dos dias e na contabilidade dos mortos.

Há quem observe na circulação do vírus uma oportunidade para o regresso a um “novo comunitarismo”. Na estagnação das grandes linhas de abastecimento global, surge agora o compasso correctivo que haverá de sobrevalorizar a lógica da proximidade, a importância da personalidade, a relevância da comunidade. Ilusões de quem muda a cor do fato no interior de uma câmara escura.

As margens sociais que ligam o grande continente humano estão em recessão, surgindo na providência dos Governos e das ideologias a comoção futurística da Grande Fortaleza Digital. A sensibilidade do meu espírito descobre apenas a grande perturbação que a crise covid-19 projecta no imaginário das sociedades, o meu olhar tomado por uma rotação infinita abre-se sobre o vórtice de uma paisagem social em profunda convulsão, uma sociedade incapaz de retomar a cadência de uma normalidade passada ou simplesmente idealizada, uma sociedade em trágica aceleração no sentido mais incerto da transformação e da mudança. O episódio promete não ser um episódio, mas a concretização de uma tragédia e a antecâmara de um outro Mundo.

Escrever sobre as pandemias é um acto humano primordial. Dentro ou fora das zonas de quarentena, as palavras pretendem devolver um sentido contra a absurda narrativa que nos asfixia, as palavras reclamam a nossa existência quando a biologia do vírus impõe a única verdade insuportável – a de que o Mundo não nos pertence.

Um vírus em digressão pelo Mundo é uma abstracção, uma irrealidade, uma ficção, uma infelicidade. Mas quando a acção do vírus, cruel, errática, aleatória, simplesmente começa a aniquilação gradual das nossas vidas, tal significa que nos devemos comportar como se fôssemos donos deste Mundo. E como donos do Mundo desejar a Lua e dominar a infecção. E porque não? Este é o princípio da Humanidade, este é o princípio que alterou a geografia, que mudou o clima, que inventou o progresso. A infecção não é uma metáfora, nem um símbolo, nem uma alegoria, mas simplesmente algo que nos mata sem vergonha ou consideração. Como criaturas da civilização temos de restabelecer a nossa existência segura e autorizada.

As estátuas são objectos inertes que celebram a vida. Mas as estátuas são também a legenda histórica de uma comunidade, a referência expedita na paisagem de uma cidade, o centro de um jardim com órbita no Mundo. Imaginem uma manhã em que as estátuas por toda a Europa morreram nos seus pedestais. Com peste, praga ou pandemia, está na hora de “matar o tempo sem ferir a eternidade”.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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