Podemos falar das 5224 mortes a mais além do COVID-19 ou é anti-patriótico?

Autoridades como a Direcção-Geral de Saúde devem assentar a sua actividade na ciência. Devem ser técnicos e não políticos. Mas não é isso que está a acontecer.

Desde a chegada da epidemia a Portugal que o Instituto Nacional de Estatística (INE) divulga o reporte semanal da evolução da mortalidade total no país.

Com estes dados sabemos se este ano se está a morrer mais ou menos em Portugal por comparação com os períodos homólogos dos últimos anos — já agora, uma palavrinha ao INE: será que além do PDF podiam também colocar no site o Excel com os dados utilizados para este reporte? Poupava muito tempo a quem gosta de fazer algumas contas com isto e ia aumentar os estudos sobre estes dados.

É natural que o número de óbitos aumente durante uma epidemia desta dimensão e com estas características. Aliás, é disso que trata esta batalha: evitar que haja contágios descontrolados e fazer com que o menor número possível destes tenha um desfecho fatal.

Mas o que se está a passar na realidade ultrapassa em muito o impacto directo da doença como causa de morte.

Os últimos dados divulgados pelo INE na sexta-feira (2 de Outubro) mostram o seguinte:

  • Entre 2 de Março (dia em que foram diagnosticados os primeiros casos em Portugal) e 20 de Setembro morreram no país mais 7144 pessoas do que a média, em período homólogo, dos últimos cinco anos;
  • O número de óbitos atribuídos no mesmo período ao COVID-19 é de 1920 pessoas;
  • Portanto, neste período há 5224 óbitos acima da média dos últimos cinco anos que não são explicados clinicamente pelo COVID-19.

Esta mortalidade em excesso é um número pesado. Olhando apenas para as 5224 pessoas que morreram por causas distintas do COVD-19, isso representa um aumento de 8,1% dos óbitos neste período em relação à média dos últimos cinco anos.

Só para termos uma perspectiva, a média da variação anual dos óbitos entre 1980 e 2019 (medida da mesma maneira, um ano face à média dos cinco anos anteriores) foi de 1,3% em Portugal. Estamos então com uma taxa de crescimento do número de óbitos (sempre e apenas os não atribuídos ao vírus) que é 6,2 vezes superior à média das últimas quatro décadas no país.

Podemos fazer outras contas:

  • Neste período analisado pelo INE, por cada pessoa que morreu por COVD-19 houve mais 2,7 óbitos por outras causas além da média dos últimos cinco anos;
  • Mas se olharmos apenas para as últimas quatro semanas abrangidas por este reporte do INE (24 de Agosto a 20 de Setembro), essa equivalência dispara: por cada pessoa que morreu de COVID-19 houve outras 7,5 pessoas que morreram por outras causas acima da média dos últimos anos. É que neste período os óbitos em excesso foram 1015 e “apenas” 119 são atribuídos ao COVID-19.

Claro que este efeito colateral da epidemia tem ocorrido um pouco por todo o lado. Mas será que o acréscimo da mortalidade não COVID-19 evoluiu na mesma intensidade e amplitude na generalidade dos países?

A revista The Economist tem, desde o início, acompanhado este fenómeno. E consultando os gráficos e os dados que apresentam podemos ver que Portugal é um caso atípico: comparando numa base proporcional (por 100 mil habitantes), temos, por regra, menos mortes por COVID-19 mas vamos tendo sistematicamente dos maiores acréscimo de óbitos atribuídos a outras causas.

Em vários países do centro e Norte da Europa já se regressou, inclusivamente, a níveis de mortalidade inferiores aos registos históricos (a The Economist utiliza os dados da EuroMOMO, uma plataforma de monitorização da mortalidade na Europa que toma como base comparativa os anos 2009 a 2019).

Os especialistas dirão o que se passa e como se explica isto. Mas será que não estamos a concentrar toda a atenção na epidemia quando temos outros problemas tão ou mais graves em evolução que não estão a ser devidamente acompanhados e combatidos?

Mais do que os próprios factos, o que impressiona é que em Portugal não se esteja a prestar atenção a eles. Ninguém, das autoridades, ainda se dignou dar uma explicação, uma justificação minimamente sustentada para o que está a acontecer e sugerir ou implementar medidas para tentar corrigir o excesso de óbitos.

Intuitivamente, podemos estar perante várias causas.

Pode acontecer que a classificação de mortes por COVID-19 esteja a subavaliar esta causa, aumentando na mesma amplitude as restantes causas de óbito. Será? Se sim, porquê?

Já sabemos, por outro lado, que o acesso aos cuidados de saúde caiu desde o início da pandemia. São vários milhões as consultas e cirurgias que ficaram por fazer, adiadas ou canceladas. E isto tem, obviamente, um custo também em vidas humanas.

Esta quebra dos actos médicos acontece essencialmente por dois motivos: por incapacidade ou desorganização dos serviços de saúde, muito concentrados na epidemia; mas também por receio dos próprios utentes que, muitas vezes, preferem adiar a consulta ou a cirurgia porque têm a percepção de aumento do risco de contágio se forem a unidades de saúde.

E neste caso é gritante a falta de pedagogia e de informação dada aos cidadãos, em profundo contraste com o que aconteceu e acontece com o coronavírus. Se muitos dos receios que estão a afastar muitas pessoas dos cuidados de saúde de que necessitam são infundados e podem, e facto, ser prestados pelos serviços, é criminosa a ausência de alerta e informação pública consistente e permanente que permita corrigir esses mitos.

Se estamos perante um colapso parcial do sistema a lidar com doenças não COVID-19 é preciso saber o que se passa, porquê e que solução tem.

A ligeireza e desvalorização que se está a dedicar a este acréscimo de 5224 óbitos (de novo, são mortes além das classificadas por COVID-19) pode dar a entender que, dentro do pesar que as mortes representam sempre, os números não são assim tão graves.

Não? Compare-se com a atenção que dedicamos, e bem, a algumas doenças cuja mortalidade queremos prevenir.

Num ano, em Portugal, morrem 4.300 pessoas por diabetes, 4.200 pessoas por acidentes, envenenamentos e violências ou 4.800 por doenças do aparelho digestivo (dados da Pordata referentes a 2018).

Em apenas meio ano, os efeitos colaterais da epidemia no acesso a cuidados de saúde já matou mais pessoas do que qualquer uma destas causas durante um ano.

Não é normal que não se esteja a discutir e a tentar ultrapassar o problema, pois não?

Acresce que estamos num período em que as autoridades de saúde – Ministério e Direcção-Geral – têm naturalmente colocado grande esforço na comunicação, explicação e pedagogia.
Mas este aumento dos óbitos não COVID-19 tem sido claramente um dos parentes pobres desse esforço.

Sem surpresa, Graça Freitas já disse uma coisa e o seu contrário sobre o assunto. Quando se começou a perceber a tendência do aumento de óbitos, a directora-geral de Saúde tinha uma explicação na ponta da língua. Estávamos em meados de Julho e a causa era “um pico de calor” e a mortalidade que lhe está associada, o que serviu para que fizesse pedagogia sobre os cuidados a ter em dias mais quentes.

O tempo foi passando e o calor também. Mas o acréscimo de mortes, pelo contrário, tem aumentado. O rápido e conveniente diagnóstico feito em Julho já não pode, afinal, ser feito agora.

A directora-geral de Saúde em meados de Setembro: “Codificar as causas de mortes é muito difícil, porque a maioria das pessoas, quando morrem, tem um historial de doenças que podem levar à sua morte mas que pode não ser a sua causa básica”. E ainda: “Estamos a finalizar agora, em 2020, a análise de todas as causas de morte em 2019, porque exige formação específica e a utilização de uma classificação internacional complexa”.

Portanto, lá para o final de 2021 saberemos o que está a matar mais portugueses durante 2020 o que é de uma extrema utilidade, como se percebe.

E na sexta-feira o diagnóstico voltou a ser mais complexo: “é difícil” conhecer a causa de morte, o indicador do INE é “importante”, mas a comparação com a média com “não dá uma verdadeira dimensão da realidade”, disse a directora-geral.

Portanto, em dois meses passámos de uma causa clara que não controlamos – o calor – para a dificuldade extrema em conhecer as causas, porque provavelmente podíamos e devíamos conhecer e controlar as causas e as autoridades de saúde não estão a fazê-lo.

O que se espera de autoridades como a Direcção-Geral de Saúde é que assentem a sua actividade na ciência, nos aspectos técnicos e no melhor conhecimento disponível. Que sejam rigorosos com os factos e transparentes na sua actuação, porque uma boa parte da eficácia da sua acção depende da sua reputação e credibilidade. E, sobretudo, o que se espera é que tenham como missão única cuidar da saúde pública sem preocupações com o controlo de danos políticos para os governos e governantes de turno que lhes calham como tutela.

No fundo, que sejam técnicos e não políticos, ao contrário do que tem acontecido.

Nessa linha, o que se esperaria sobre o excesso de mortes era uma explicação convincente, sustentada e informada das autoridades, assente em factos e não em achismos de ocasião e as consequentes recomendações aos cidadãos. Não é isso que está a acontecer.

A menos que pedir que se dedique atenção ao assunto seja também anti-patriótico. Mas se o patriotismo é o jogo de sombras em cena então os deuses que nos livrem dele.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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