Política monetária verde

A transição energética, sendo uma transformação profunda no sistema energético, também deve abarcar o setor financeiro e os bancos centrais. A política monetária também tem de ser verde.

O artigo 127º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) determina que a política monetária do Banco Central Europeu (BCE) tem como objetivo primordial a estabilidade de preços. Sem sacrificar o objetivo da estabilidade de preços, e embora atue de forma independente, o BCE deve cooperar com as outras instituições da União Europeia (UE), contribuir para a realização dos objetivos constantes do artigo 3º do TFUE e apoiar as políticas gerais da União.

O principal instrumento usado pelo BCE para assegurar a estabilidade de preços, e manter a inflação em torno dos 2%, é a taxa de juro de referência. Entende o BCE, e entende a generalidade dos bancos centrais, que a variação das taxas de juro de referência interfere na generalidade das restantes taxas de juro, o que – por via do efeito no crédito, no consumo, no investimento e na taxa de câmbio – influencia os preços e a inflação. Se o objetivo é reduzir a inflação e as expetativas inflacionárias, o banco central sobe os juros, e vice-versa.

Perante uma forte aceleração da inflação causada pelo preço do gás e pelos problemas relacionados com as cadeias logísticas no pós-covid, no dia 21 de julho de 2022, e após 11 anos sem subir juros, o BCE anunciou a subida das suas taxas diretoras em 50 pontos base. Após a primeira subida, o BCE aumentou as taxas mais 9 vezes. Entretanto, o BCE já baixou por 6 vezes as taxas, mas estas ainda estão muito acima da média da última década Tudo isto, dirá o BCE, tem fundamento teórico e prático, e contribui para a estabilidade de preços. Mas será mesmo assim?

Um dos principais efeitos da subida das taxas de juro foi deteriorar ou inviabilizar financeiramente projetos de energias renováveis – em particular eólicos (onshore e offshore), mas também solares e baterias, que são essenciais para conter ou reduzir os preços da eletricidade. Como a UE aposta na eletrificação crescente da economia, este efeito dos preços da eletricidade na inflação tenderá a ser ainda mais relevante e transversal.

Sendo investimentos intensivos em capital, e com todo o investimento feito à cabeça, este tipo de projetos são muito sensíveis às taxas de juro e ao custo de capital. Uma subida nas taxas de juro, como a que ocorreu, afetou negativamente todos os projetos – levando à necessidade de subida de preços para compensar o aumento de custos financeiros ou, com o adiamento ou cancelamento de projetos, maior dependência, e durante mais tempo, do gás natural, que é mais caro, aumenta os custos da eletricidade e, por essa via, todos os preços e a inflação.

Se penalizamos e encarecemos os projetos renováveis que podem contribuir para reduzir o consumo de gás e os preços da eletricidade, o canal de transmissão da política monetária é o inverso do tradicional – porque a subida de juros pressiona os preços de eletricidade em alta e, por isso, tem efeito inflacionário, sobretudo no médio-longo prazo. E se olharmos para o que se passou até julho de 2022, vemos que a subida nominal dos salários foi uma consequência da inflação, e não o inverso, sendo a principal pressão inflacionista os preços da energia (não causados por aumento excessivo do consumo ou do investimento, mas por uma guerra) e a perturbação nas cadeias logísticas num contexto de saída de uma pandemia. Os juros podem ter tido efeito no negativo no consumo e no investimento, pressionando os preços em baixa, mas também teve um efeito negativo no setor das renováveis – o que tem efeito inverso, sobretudo porque afeta imediatamente as expectativas futuras de evolução de preços e da inflação, uma dimensão essencial da política monetária. E a subida dos juros pouco ou nada contribuiu para mitigar os problemas nas cadeias logísticas. Ou seja, nos dois elementos que provocaram a subida dos preços e da inflação, a subida dos juros ou teve um efeito negativo (investimento em renováveis) ou nulo (cadeias logísticas). O efeito que teve foi apenas via arrefecimento da economia, do consumo e, sobretudo, do investimento.

Sendo assim, e tendo em conta que as políticas gerais da União incluem a aposta nas renováveis, na eletrificação da economia e numa menor dependência de combustíveis fósseis (também por razões de preços), usar a taxas de juro como instrumento de controlo da inflação não pode deixar de ter em conta o mecanismo de transmissão monetária que afeta os preços por via do investimento em renováveis. Ter em conta este efeito também pode ter um impacto positivo na taxa de câmbio – inverso ao previsto na teoria usada pelo BCE. Uma economia europeia que torna o investimento em eletricidade renovável mais viável financeiramente e mais competitivo, num contexto de eletrificação crescente, como preconizado pela União, não se limita a viabilizar investimentos que contribuem para a estabilidade de preços, mas também torna a economia europeia mais autónoma, mais resiliente e mais competitiva – alinhando melhor as condições monetárias e financeiras com os objetivos estratégicos da União. Uma economia europeia mais robusta reforça o euro, não o oposto. Também aqui o mecanismo de transmissão da política monetária não é o convencional, porque uma redução dos juros, sobretudo no contexto em que está o dólar, pode reforçar o euro. Por outro lado, uma economia menos dependente de combustíveis fósseis e mais eletrificada, também contribuiu para a estabilidade financeira da União, um objetivo também ele central para o BCE.

A revisão em alta dos custos, o cancelamento ou adiamento de projetos eólicos nos mares do Norte e Báltico, como tem ocorrido, aumenta os preços no curto e, sobretudo, no médio prazo, contrariando o mandato do BCE e as políticas gerais da União. Sendo assim, o BCE deve ter em conta este efeito negativo nos preços quando decide agir sobre as taxas de juro de referência. Se lermos bem o que diz o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, também é isso que está no seu mandato. Implica alguma adaptação na atuação do BCE? Sem dúvida. Mas transição energética, sendo uma transformação profunda no sistema energético, também deve abarcar o setor financeiro e os bancos centrais. A política monetária também tem de ser verde.

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