Política na Justiça

Não existe uma única ideia para a reforma da justiça. Ocupados em inventar impostos, taxas e sobretaxas, esquecem o maior imposto cobrado sobre a liberdade pelo medo.

A democracia portuguesa não é o que pensa. A justiça em Portugal não é o que se julga. Entre o que se julga e o que se pensa, a crise de regime é uma crise da democracia e uma crise da justiça. A ética da República é coisa política que não impressiona a Procuradoria-Geral. A ética da Procuradoria-Geral é coisa política que preocupa a classe política. Quando a justiça faz política e a política receia a justiça estamos num regime autocrático em que a democracia é uma formalidade e a justiça é um instrumento que garante o domínio político. Há aqui uma perigosa inversão – a justiça é o exercício da política e a política é o que é permitido pelo exercício da justiça.

Entre a justiça e a política sobra um país com a aparência normal de uma democracia formal. Mas o que não escapa ao cidadão comum, e aos portugueses que ainda acreditam neste país, é que existe um Portugal desconhecido nos subterrâneos democráticos. Pela opacidade das investigações, pela oportunidade dos timings, pelo largo espectro político absorvido pela vigilância da justiça, pela exibição de um poder espectáculo, pela impunidade, pela imunidade, tudo pode servir para identificar uma qualquer “teoria da conspiração” que mantém a democracia sob vigilância e garante a “república dos juízes”. Os portugueses não contam nesta contabilidade do poder. Mas para que o poder seja democrático o sistema de justiça é tão fundamental à liberdade como o voto é o oxigénio para o génio da liberdade.

Quando se observa a presente situação do país existe uma perplexidade para além da mera coincidência. A crise dos três governos tem demasiada interferência da justiça e demasiada irresponsabilidade política. Os políticos parecem ocupados na discussão acelerada de um qualquer programa para a retoma do ciclo normal e democrático. No entanto, enquanto se discute a filigrana do detalhe de um pormenor, no mundo da classe política ninguém é capaz de apresentar uma “ideia de país” a longo prazo, ninguém é competente na elucidação de um “desígnio nacional” a médio prazo. Tudo são propostas sem “argumentos de princípio” onde escorrem “argumentos de oportunidade” para disfarçar o vazio no curto prazo.

Há socialistas, comunistas, liberais, social-democratas, democratas-cristãos, radicais de esquerda, radicais populistas de direita, ecologistas, esquerda-animal, esquerda-verde europeia e nada. A avalanche de tantas palavras e de tantos discursos resulta numa encenação inerte de ideias feitas e de ideias mortas e de ideias por fazer. Simula-se com a indignação a clássica distinção entre esquerda e direita como se toda a esquerda fosse moral e toda a direita fosse imoral. Depois é a linguagem política que espelha uma espécie de “fascismo da vulgaridade” onde a “borla fiscal” combate o “choque fiscal” e o “bloqueio económico” enfrenta a “estagnação social”.

A democracia portuguesa está iluminada por um enorme espelho manipulado para reflectir flashes de ideias que cegam os portugueses e escondem os políticos. São flashes que escondem as complexidades do mundo em guerra e do mundo em crise. O discurso político em Portugal é a roleta russa das barricadas e o constante desejo das emboscadas. Um companheiro não é um camarada, um irmão não é um amigo, é a lógica da fragmentação política e do sectarismo ideológico que não reconhece que somos todos portugueses.

Depois vem o país particular da justiça. O reino da justiça entende-se como um vasto território mitológico que modera os comportamentos e controla as vontades disfuncionais. Nesta zona especial existe uma espécie de “neutralização da política interna” substituída por um “espírito corporativo” que vigia a política para a poder controlar e no limite manipular. Apesar da neutralização da política interna na justiça existe uma intensificação da competição interna que gera uma “energia explosiva” que se projecta numa acção judicial externa de matriz inconfundivelmente política. Em tempo de “normalidade democrática”, o condomínio da política e o condomínio da justiça não estão ao mesmo nível.

Pela corrente situação do país político, o condomínio da justiça exibe toda uma superioridade que se torna em afirmação de controlo político. A justiça que é insuportavelmente lenta. A justiça que é arbitrariamente complexa. A justiça que assume a independência como um privilégio. A justiça que utiliza o próprio segredo de justiça como uma arma judicial no grande tribunal da opinião pública. A justiça que é um Estado dentro do Estado.

Com os alvos políticos em movimento, a política ocupa-se a esconder o problema como se não existisse problema. Não existe uma única ideia para a reforma da justiça. Ocupados em inventar impostos, taxas e sobretaxas, esquecem o maior imposto cobrado sobre a liberdade pelo medo. Um dia o país acorda com tribunais plenários abertos e mandados de busca passados em branco.

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