Populismos na América

A América percorre hoje uma recta paralela tendo nos extremos do desequilíbrio bipolar o “shutdown” do Governo e o muro na fronteira com o México.

1.

De parte fica a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos. De lado repousa a “conspiração” entre a Rússia e a América em tempo de Presidenciais. Enérgica continua uma economia em expansão, uma bolsa em alta persistente e os números do emprego que desafiam as melhores expectativas. Pausa.

A América percorre hoje uma recta paralela tendo nos extremos do desequilíbrio bipolar o “shutdown” do Governo e o muro na fronteira com o México. Os irredutíveis na Casa Branca confrontam-se com os irredutíveis na Câmara dos Representantes. Sem “paychecks” à vista, os servidores públicos acumulam dívidas nos cartões de crédito, recorrem a instituições bancárias, procuram a assistência de ONG’s para suprir necessidades de alimentação e abrigo. O impasse na “nação indispensável” é a ruptura da lógica da negociação e do consenso típicos da democracia liberal e protagonizado pelos grandes e clássicos partidos do centro. De certa forma, o “shutdown” representa a vitória do populismo sobre toda e qualquer outra ideologia.

A bactéria que paralisa a democracia na América limita-se a disseminar o medo, o ressentimento, a retracção, que num efeito cruzado e combinado abrem espaço para uma expressão do autoritarismo. A Autoridade da Câmara dos Representantes desafia a Autoridade do Presidente. O discurso político é infectado pela emoção e pelo simplismo, tudo projectado numa onda de virtude e moralismo que apenas mascara o oportunismo e a demagogia.

Republicanos e Democratas, Conservadores e Liberais, estão hoje apostados em dividir a nação americana em busca de uma vitória política imediata. As “pessoas reais” dos Democratas não são as “pessoas reais” dos Republicanos. As “elites corruptas” dos Democratas não são as “elites corruptas” dos Republicanos. Esta divisão e exclusão são expressões de um populismo instalado, à Esquerda e à Direita, e o confronto político converge na imposição de uma “vontade geral”, real ou imaginária, mas que imprime uma lógica destrutiva entre “nós” e “eles”, entre os “bons” e os “maus”, entre a certeza incorrupta e a corrupção do erro.

As duas Américas olham-se mas não se reconhecem na sobreposição de um qualquer consenso. De um lado, o populismo Republicano, exclusivista, nativista, obcecado pela imigração e pelas minorias, sublimado na reformulação de uma lógica nacionalista. Do outro lado, o populismo Democrata, inclusivo, internacionalista, obcecado pela justiça social, por todas as igualdades sem distinção, sublimado na reformulação de uma lógica socialista. Mas comum aos dois populismos será a intolerância e o ódio imaturo que os liga numa irmandade funesta, e que de caminho entrega o discurso político a uma espécie de psicologia da plebe que tudo elimina à sua passagem.

Se o termo “populismo” deriva da designação “Prairie Populists”, um movimento de agricultores americanos que, na década 1890, fazia campanha a favor de uma regulação mais robusta do capitalismo, hoje o termo coalesce entre a resposta democrática iliberal e o liberalismo não democrático.

2.

Na Grande Estação da América um sem-abrigo recolhe-se do frio e da noite. Sentado na cadeira de rodas blindada por filas de sacos de plástico, ajusta a pala do “RedSkin cap” ao perfil do pescoço. Por entre as películas de roupa que o separam do mundo ressalta da confusão o orgulho de uma camisa com a insígnia da 101st Airborne Division – The Screaming Eagles. Enquanto observa o movimento pendular da multidão apressada bebe por uma garrafa embrulhada num saco de papel – o velho “painkiller” para a nova geração.

Na rua em frente à Grande Estação da América os automóveis, alinhados em três filas, param a cada sinal vermelho. De lado nenhum surge no écran da janela duas mãos com um rosto ao meio e que se encosta ao vidro e que diz: “Dollar, Dollar”. Encarcerados dentro do carro, presos no meio do trânsito, as palavras são praticamente inaudíveis, mas o movimento dos lábios naquele rosto hispânico não deixa dúvidas sobre o pedido. A luz passa a verde e a vertigem do trânsito empurra-nos para a frente deixando para trás, em plano de filme americano, um rosto cada vez mais pequeno até desaparecer para sempre da visão do condutor e da memória do actor.

A Cidade na Colina. A Cúpula do Capitólio. Uma luz que se apaga num primeiro andar anónimo. Ruídos de música. Um porta-aviões patrulha a rota dos oceanos. Os caças cruzam os céus da América. Os becos escoam anfetaminas e outras mercadorias. Entre o Vietnam Memorial e o Lincoln Memorial há algo que se liberta do coração da América – “The land of the free and the home of the brave”.

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