Por que Marcelo deve ajudar Costa com os professores

Em França, os coletes amarelos pedem a paz no mundo, só que com bombas na mão. Por cá, a paz social acabou. E os professores prometem guerra. Sorte a nossa, que Marcelo não é Macron.

1.
Eles foram para as ruas e pediram tudo: pensões mais altas e baixar a idade de reforma (para os 60 anos); menos impostos, mais empregos, salários maiores e menos precariedade. Querem impor rendas mais baratas. Também esperam mais meios para a justiça, polícia e exército. Exigem investimento nas estradas. Pedem mais imigrantes, mas não empresas estrangeiras. Querem nacionalizar as empresas de gás e eletricidade – para diminuir os preços.

E que haja um perdão da dívida para pagar tudo.

Os coletes amarelos querem o que todos queremos. São como o Bloco de Esquerda, ou uma espécie de Miss Mundo. Só que trazem bombas na mão que atiram à polícia, fazem explodir carros, orgulham-se da violência.

A verdade é que os coletes amarelos são, para nós, um aviso muito sério: eles não têm liderança, não têm hierarquia. Trazem propostas contraditórias, irrealizáveis no curto prazo. Os coletes amarelos pedem o impossível, como quem manda postais ao pai Natal. E se o pai Natal não responder?

2.
Tem toda a razão o deputado Sérgio Sousa Pinto. A França não pode impor mais impostos sobre o gasóleo quando ainda há pouco incentivava os franceses a comprá-los. Macron não pode aumentar a desigualdade, porque nenhuma sociedade desenvolvida a pode suportar nestes níveis por muito tempo.

Porém, o que nós aprendemos ao longo do último século é que a luta só se faz organizada. E o progresso só chega devagarinho – sabendo que haverá recuos na linha do progresso sempre que uma crise se atravessa. Mais hoje, num mundo global.

3.
Atenção: movimentos inorgânicos – sem sindicatos por trás – existem e já os vimos por cá. Na crise da TSU, no tempo de Passos Coelho, o nosso foi bem melhor do que os coletes amarelos: um milhão de portugueses saiu às ruas, com uma causa única. Esse milhão de portugueses ganhou a luta. E com isso saiu de cena, dando lugar a quem os representava, nas lutas mais complexas: os partidos da esquerda e os sindicatos.

Durante os anos da troika, é bom lembrar, foram eles (partidos e sindicatos) que comandaram a contestação. Que a organizaram, que a hierarquizaram, que definiram as prioridades da sua luta. Umas batalhas ganharam (até no Tribunal Constitucional), muitas perderam.

Aos sindicatos, em particular, a crise tirou alguma força. Perderam gente, perderam financiamento, perderam influência. Mas seguraram o essencial: o país, a válvula de escape do descontentamento.

4.
Mas depois veio a geringonça. Impulsionada pelo PCP, pelos sindicatos. Muitos (eu incluído) chamaram-lhe luta pela sobrevivência. Mas essa sobrevivência dos sindicatos é, devemos reconhecer, a sobrevivência da democracia como a conhecemos: a representativa, orgânica, organizada.

Sim, uma das maiores conquistas de António Costa, na formação da geringonça, foi o de dar um novo significado aos sindicatos. Com a sua formação, ganhou corpo também a sua agenda.

Durante três anos tivemos, por isso, recuperação de rendimentos e de direitos que vieram da base sindical até ao Parlamento. Nunca houve tanta paz social como no início desta geringonça. Com custos para o orçamento, mas ganhos na confiança geral.

5.
Mas uma geringonça não poderia comprar a paz eterna. Se o primeiro ano foi pacífico, só no ano passado houve muito mais greves convocadas do que as que vivemos no pior dos anos da troika.

Agora piorou: os alinhamentos dos telejornais desta semana bastaram para mostrar como a luta aqueceu com a aproximação das eleições. Só não é um pesadelo, porque está longe do que se vê em França. Mas é um susto:

  • Uma greve dos comboios ameaça, hoje, transformar a vida das pessoas num inferno, porque nem transportes alternativos existem;
  • A greve dos enfermeiros, já adiou quase 4000 cirurgias e vai prolongar-se até 2019;
  • A dos técnicos de diagnóstico não ajudará;
  • A anunciada pelos Bombeiros vai alargar a tensão a outra área;
  • A dos guardas prisionais, que vai prolongar-se e já deu origem a desacatos nas prisões;
  • A dos oficiais de justiça, funcionários judiciais e juízes vai parar muitos tribunais;
  • A dos estivadores já ameaça o Porto de Setúbal e também a Autoeuropa;
  • Para não falar daquela que aí vem dos professores, com o grito de guerra disparado pelo sempiterno Mário Nogueira: “Querem guerra, vão ter guerra”.

6.
É uma guerra, sim. Uma guerra que parte dos professores, mas que rapidamente se estenderá a muitos outros setores – porque sem acordo nas escolas não haverá solução para polícias, militares, juízes ou enfermeiros. Uma guerra, sim, e os políticos deitam gasolina para a fogueira:

  • No Parlamento, esquerda e direita uniram-se para anular a decisão do Governo, mas sem se entenderem quanto a uma solução;
  • Na Madeira, o Governo do PSD deu-lhes muito mais, tendo eleições à vista e a maioria em perigo;
  • Nos Açores, o Governo socialista de Vasco Cordeiro deu-lhes tudo, alimentando a tensão com o Governo central.

Sejamos realistas: neste problema das carreiras, o Governo traçou uma regra, comparável à da administração pública. Será pouco justa, mas a possível. Os sindicatos foram flexíveis no tempo de aplicação, mas não na regra – querem tudo, não deixam nada. A direita e a esquerda foram eleitoralistas: usaram os sindicatos para mandar o Governo para o olho da contestação.

Neste difícil dilema, Marcelo terá a sua decisão mais sensível do último ano antes das eleições. Promulgar o decreto do Governo sobre os professores será colar-se ao Governo, vetar será colar-se à oposição e aos sindicatos, sem garantia de uma solução – e arriscando meses de uma guerra balcanizada.

Vale-nos a sorte de Marcelo não ser como Macron: pelo menos ele pode usar a sua popularidade para impor uma solução de bom senso, que não seja entendida como uma declaração de guerra aos sindicatos.

Promulgue, sr. Presidente. E diga aos partidos que, se quiserem, usem a campanha para propor uma solução diferente. E que conquistem os votos para depois a aplicar.

Quem não gostar, mas não conseguir criar consensos ou maiorias, tem bom remédio: que mande postais ao Pai Natal.

Notas soltas da semana

  • Os deputados que não merecemos. Há mais de 3 milhões de euros por explicar em viagens de deputados. Há uma deputada que diz que assina a presença por “vários” colegas. Há, portanto, uma absoluta falta de vergonha a pairar por São Bento. Ferro Rodrigues promete cartões para apertar os faltosos e faturas para vigiar as viagens. Eu recomendaria, ao invés, a expulsão de alguns para dar o exemplo. Quem começa?
  • A promessa mais ameaçadora de Rui Rio. Segundo o Expresso, o líder do PSD aconselhou calma ao Conselho Nacional do PSD. “Podemos perder à primeira, à segunda, à terceira, à quarta, à quinta… mas vem um dia em que perceberão.” Se perder as próximas cinco, Rui Rio partirá para as legislativas que espera ganhar com 83 anos – pondo-nos à espera dele por mais de 20 anos. De todas as promessas que já fez, parece-me a mais ameaçadora.
  • O desejo do sr. Natal. O presidente da empresa que mais multa em Portugal disse ao Negócios que tem um sonho: “Tornar a EMEL a empresa mais amada do país”. Ele chama-se Natal – e não é uma ironia. Cuidado senhoras renas!
  • Uma pergunta para Centeno. Para que serve um presidente do Eurogrupo que nem consegue convencer-se a seguir as suas próprias recomendações?
  • Um perdão para o ex-ministro. Manuel Pinho aproveitou o perdão fiscal de 2011 para trazer o seu dinheiro das offshore para Portugal. Já agradeceu a Passos Coelho?
  • Ninguém toca no Marcelo. A Comissão de Inquérito vai chamar os assessores militares de António Costa, mas ninguém da Casa Militar do Presidente.
  • Obedece quem deve. Na China perseguem-se comunidades muçulmanas, enfiando milhões em campos de concentração. Da China vem uma concorrência desleal ao comércio mundial. Da China partem ameaças sérias à democracia no mundo. Em Portugal recebe-se o Presidente chinês como se recebe um imperador. Chamam-lhe realpolitik. Eu desejo-lhe boa viagem. De volta.

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