
Portugal, uma identidade construída a partir da diversidade
Somos e seremos uma mistura de povos e de nomes, e devemos ter orgulho nessa identidade multicultural e tolerante, independentemente do discurso político divisionista que alguns querem passar.
Neste texto de opinião desconstruo narrativas recentes sobre a predominância de apelidos estrangeiros nas crianças de uma escola, tirando lugar a crianças portuguesas e refletindo uma suposta “substituição demográfica”, mostrando como Portugal é uma mistura de diferentes povos e culturas que sempre soube integrar na construção da nossa identidade. Essa capacidade de integração foi, é e continuará a ser essencial para o nosso futuro coletivo. Começo por esta segunda parte: a necessidade de imigração, mas regulada – ou seja, nem muros, nem ‘portas escancaradas’.
Imigração regulada em função das necessidades da economia e da capacidade de integração
Se a entrada descontrolada de imigrantes nos últimos anos foi um enorme erro, no futuro continuaremos a precisar de um fluxo de imigração regulado em função da atividade económica. Nesse sentido, devemos evitar políticas demasiado restritivas, pois poderão penalizar o potencial de crescimento da economia e a desejável aproximação aos países europeus de nível de vida mais elevado num horizonte razoável (como uma década), conforme referi numa crónica anterior, propondo ajustamentos às recentes propostas de alteração do governo à Lei da nacionalidade (naturalização de estrangeiros) e política de imigração.
Se restringir a imigração para níveis aquém das necessidades da economia é travar o crescimento e negar o futuro, abrir fronteiras sem critério é semear a desordem. A única via sensata é uma imigração regulada: Suficiente para sustentar o desenvolvimento, contida para garantir a coesão social.
A minha posição encontra respaldo numa análise recente da OCDE, evidenciando que “a mão-de-obra disponível depende fortemente da imigração”. A força de trabalho em Portugal aumentou 0,7% ao ano, em média, entre 2020 e 2024, mas teria diminuído 0,1% ao ano sem a entrada de trabalhadores estrangeiros, segundo a OCDE. O problema é que, como referi nessa crónica, a entrada de estrangeiros de 2022 a 2024 nos dados da AIMA parece ter ido muito além das necessidades da economia, possivelmente alimentando a economia paralela e redes de imigração ilegal, e gerando dificuldades na capacidade de integração e absorção social, incluindo na resposta dos serviços públicos e infraestruturas.
Foi, por isso, positivo o governo AD ter terminado, em junho de 2024, o regime de “Manifestação de Interesse”, que fora instituído pelo PS com o apoio dos partidos à sua esquerda em 2017. Esse regime esteve na origem do descontrolo das entradas, e a sua substituição pelo mecanismo da “Via Verde da Imigração”, que pressupõe um contrato de trabalho prévio e, assim, uma adequação às necessidades da economia, como defendo, procurando garantir uma correspondência entre quem chega e o que a economia precisa. Como o mecanismo é recente, deve ser alvo de monitorização e avaliação regulares, e eventuais ajustamentos necessários, conforme referi nessa crónica.
Precisa ainda de ser articulado com a política de vistos de trabalho, que o governo pretende restringir a trabalhadores altamente qualificados, mas devia antes focar-se nos trabalhadores especializados – com a experiência e qualificação adequadas a cada profissão, comportando, assim, pessoas com mais ou menos habilitações literárias –, de que tanto precisam os vários setores da economia.
A economia deve evoluir para um perfil de especialização mais assente em conhecimento e tecnologia, só que tal não se faz restringindo os vistos de trabalho a trabalhadores altamente qualificados, mas mudando, gradualmente, as necessidades da economia através de um conjunto integrado de políticas. Entre elas, destaco o reforço dos critérios de produtividade e valor acrescentado no “Portugal 2030” (PT 2030) e a sua reorientação para as empresas; a descida do IRC e IRS; e a reindustrialização, incluindo o desenvolvimento da indústria de defesa, para cumprir as novas metas da NATO criando valor e receita fiscal de modo a acomodar a subida gradual da despesa pública com Defesa sem sacrificar o Estado social.
O mecanismo da “via verde” e a política de vistos de trabalho devem, assim, ser as duas pedras basilares da regulação da imigração, pelo que faz sentido restringir os vistos de residência, como previsto pelo governo, pelo menos nesta fase em que é preciso um maior controlo de fluxos.
Os partidos à esquerda do espectro político reconhecem, e bem, que a segurança é um bem essencial numa sociedade justa. Mas, por vezes, parecem hesitar quando essa segurança se traduz na ação concreta das forças policiais – como no caso de rusgas realizadas em zonas sinalizadas como de maior risco, muitas vezes localizadas em bairros sociais onde, por acaso ou por contexto, residem também muitos imigrantes.
Quanto às demais alterações previstas, a Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras integrada na PSP parece reunir bastante consenso e já foi aprovada pelo Parlamento com os votos a favor dos partidos de direita e a abstenção da esquerda. Refira-se, contudo, que essa nova Unidade e a polícia em geral precisam de condições efetivas para exercer de forma mais efetiva as suas competências em matéria de segurança, não apenas em termos de remuneração (a esse nível já houve melhorias) e de equipamento – há anos que os polícias aguardam pelas bodycams, que permitem filmar e defender a sua atuação –, mas sobretudo o respaldo do poder político na sua intervenção.
Os partidos à esquerda do espectro político reconhecem, e bem, que a segurança é um bem essencial numa sociedade justa. Mas, por vezes, parecem hesitar quando essa segurança se traduz na ação concreta das forças policiais – como no caso de rusgas realizadas em zonas sinalizadas como de maior risco, muitas vezes localizadas em bairros sociais onde, por acaso ou por contexto, residem também muitos imigrantes.
É importante ser coerente. Se, como defendem, não existe uma correlação significativa entre imigração e criminalidade – e com razão, tendo em conta os dados disponíveis –, então não faz sentido levantar objeções à atuação regular da polícia quando esta ocorre em contextos onde vivem ou estão presentes (circunstancialmente) imigrantes. Atuar onde o risco é maior não é discriminação – é prevenção.
Este debate ganha ainda mais relevância com a criação da nova Unidade especializada, cuja missão passará, inevitavelmente, por lidar frequentemente com comunidades migrantes. É fundamental que esta Unidade tenha o respaldo político necessário para atuar com firmeza, mas também com humanidade, com formação adequada e sob escrutínio democrático.
A segurança – tal como a inclusão – exige coragem, consistência e compromisso com todos os que vivem entre nós, independentemente da origem. Porque só uma sociedade que protege pode verdadeiramente acolher. E só um país que se sente seguro pode abrir os braços sem medo.
Outras medidas propostas pelo governo parecem excessivas – algumas suscitando mesmo questões de constitucionalidade, como referem vários especialistas –, como referi nessa crónica e estão em discussão. Destaco, sobretudo, o aperto proposto nas regras de naturalização de estrangeiros. Relembro que as atuais regras são as mesmas que vigoravam em anos com menos imigração, porque a economia crescia menos, evidenciando que a regulação se deve fazer em função da economia e não dessa forma.
Embora concorde com o novo requisito de conhecimento da cultura e funcionamento da sociedade portuguesa nas regras de acesso, mostrando progresso na integração, a redução proposta do número de anos de residência necessário para a naturalização (7 para cidadãos lusófonos e 10 para os outros) colocaria Portugal entre os países mais restritivos a nível europeu, reduzindo a nossa capacidade de atração de um fluxo regular de imigração no futuro, além da possível saída imediata de estrangeiros residentes que precisarão de muitos mais anos para se naturalizar (sobretudo os não lusófonos), podendo penalizar a economia em geral e, no imediato, a execução do PRR.
Se os novos dados de população estrangeira da AIMA vieram dar razão ao Chega em matéria de descontrolo dos fluxos da imigração e colocação desse tema na agenda política e social, esse controlo deve fazer-se com políticas como as referidas acima, e não estigmatizando segmentos da população estrangeira, o que é condenável e me leva ao principal foco deste artigo, que abordo abaixo.
A polémica dos apelidos estrangeiros de crianças numa escola lidos no Parlamento
Se a dicotomia entre a escassez de mão-de-obra e o risco de descontrolo migratório exige um equilíbrio sensato, como mostrei acima, esse controlo deve ser feito com o máximo de consenso possível após um debate sereno e esclarecido entre o governo e as demais forças políticas, além da necessária auscultação dos parceiros sociais, nomeadamente. O problema é que o debate político tem sido bastante perturbador.
Em nome do esclarecimento público e da coesão social, abaixo desmonto, de forma pedagógica, uma narrativa recente que o líder do Chega, André Ventura, apresentou no Parlamento sobre a predominância de apelidos estrangeiros, de origem árabe, numa escola portuguesa, argumentando que estão a tirar o lugar a crianças portuguesas e que tal representa um sintoma da suposta ‘inversão demográfica’, ou seja, a substituição dos portugueses em geral por imigrantes.
Ventura leu os apelidos das crianças, mas não os nomes próprios, pelo que o discurso foi aceite pelo Vice-Presidente da Assembleia da República (que estava a liderar os trabalhos parlamentares) por não ser possível identificar as crianças em concreto – com a nota adicional de que não era discernível se elas teriam nacionalidade portuguesa ou não. Tal deu azo a múltiplas críticas (algumas bastante vocais) da maioria dos grupos parlamentares, que acompanho, devido à instrumentalização de crianças no discurso político.
Alguns dias depois, a deputada do Chega Rita Cid Matias divulgou nas redes sociais um vídeo contendo esses apelidos, mais os nomes próprios – tratando-se, alegou, de informação pública –, tornando possível, a partir daí (se a informação for verdadeira), determinar a escola e as crianças em concreto, o que é ainda mais condenável, pois, à conta deste triste episódio, poderão vir a ter problemas, assim como a família.
Estigmatizar segmentos de população estrangeira só prejudica a sua integração, e as dificuldades que sentem a esse nível – muito por culpa da ineficiência dos serviços públicos – são também exploradas pelo partido Chega, pelo que estamos perante um círculo vicioso de instrumentalização para fins políticos.
Quando esse tipo de discurso passa a envolver crianças e ganha eco nas redes sociais, penso que se atingiu um limite preocupante, pelo que é tempo para parar e refletir porque nem tudo pode valer em política.
Tanto quanto eu saiba, não houve qualquer declaração oficial do governo – e respetivos grupos parlamentares – a repudiar as intervenções dos deputados André Ventura e Rita Cid Matias, pelo que também esteve mal neste caso. Ouvi depois nos media comentários de pessoas ligadas à AD a censurar a instrumentalização, mas sem estarem a representar o governo, que seja do meu conhecimento.
Se o governo precisa de alcançar entendimentos em várias matérias com o Chega, incluindo na área da imigração, deve estabelecer limites na exploração desse tema para prosseguir as discussões, caso contrário, a qualidade do debate político só irá piorar ainda mais no futuro.
Começo por desmontar a primeira parte da narrativa de Ventura, a de que os filhos dos imigrantes estão a tirar lugar aos filhos dos portugueses nas escolas – fazendo uma generalização a partir de um caso, o que é abusivo –, que mais tarde estendeu às creches, neste caso sem apresentar qualquer dado, mas poderá também ter recebido queixas a esse respeito, pelo que incluo também essa situação na análise.
Socorro-me de uma avaliação da legislação vigente em matéria de acesso das crianças às escolas e creches levada a cabo pelo polígrafo sapo, concluindo, de forma inequívoca, que as afirmações apontando para a priorização dos filhos dos imigrantes são falsas nos dois casos.
Existem, sim, critérios ligados ao rendimento – mas nem sequer são os de primeiro nível, dentro da hierarquia estabelecida (que pode ser consultada na análise indicada do polígrafo sapo) –, relativos a beneficiários de Ação Social Escolar, no caso das escolas, e, na situação das creches, crianças beneficiárias da prestação social, garantia para a infância e/ou com abono de família para crianças e jovens (1.º e 2.º escalões) cujos encarregados de educação residam ou desenvolvam a atividade profissional, comprovadamente, na área de influência da resposta social.
A intervenção de André Ventura e a publicação de Rita Cid Matias visou apenas o mediatismo e a instrumentalização política dos imigrantes, com a agravante de que, desta vez, foram visadas crianças, muito provavelmente oriundas de famílias pobres, atendendo aos critérios vigentes. Acresce que a forma infeliz como o tema foi lançado no debate público pode, assumindo a veracidade do caso, ter repercussões reais e duradouras sobre crianças e famílias já de si vulneráveis – desde episódios de bullying escolar a consequências emocionais sérias, como ansiedade ou depressão. De um partido com responsabilidades acrescidas, enquanto nova principal força da oposição, espera-se maior responsabilidade, sensibilidade e sentido de Estado.
Se os imigrantes pais dessas crianças tiverem rendimentos relativamente baixos – o que sucederá numa grande franja de imigrantes –, enquadrando-se nos critérios referidos de apoio social, os seus filhos poderão ficar à frente de filhos de portugueses sem direito a esses apoios (por terem maiores rendimentos) e que não beneficiem dos critérios de nível superior. Por isso, a situação descrita é possível, mas resultará de critérios de rendimento existentes, não de favorecimento direto dos imigrantes.
Se o partido Chega entende que os critérios atualmente aplicados não estão a ser corretamente seguidos, nomeadamente na escola em causa, poderia ter encaminhado as queixas recebidas para o Ministério da Educação, para eventual apuramento por parte da Direção-Geral da Educação. E, caso pretenda propor alterações aos critérios ligados ao rendimento em vigor, o local próprio para esse debate é o Parlamento, idealmente com propostas concretas, devidamente fundamentadas, o que não parece ter sucedido até ao momento.
Donde se conclui que a intervenção de André Ventura e a publicação de Rita Cid Matias visou apenas o mediatismo e a instrumentalização política dos imigrantes, com a agravante de que, desta vez, foram visadas crianças, muito provavelmente oriundas de famílias pobres, atendendo aos critérios vigentes.
Acresce que a forma infeliz como o tema foi lançado no debate público pode, assumindo a veracidade do caso, ter repercussões reais e duradouras sobre crianças e famílias já de si vulneráveis – desde episódios de bullying escolar a consequências emocionais sérias, como ansiedade ou depressão. De um partido com responsabilidades acrescidas, enquanto nova principal força da oposição, espera-se maior responsabilidade, sensibilidade e sentido de Estado.
Também não posso deixar de criticar os partidos de esquerda, com o PS à cabeça, pela sua incongruência no que se refere ao combate a discriminações e desigualdades. Se os acompanho no repúdio à instrumentalização e discriminação dos imigrantes – em particular de crianças – pelo Chega, também não posso deixar de os censurar por não repudiarem da mesma forma a discriminação entre portugueses de origem, designadamente entre os do interior (e insulares) e do litoral.
Os governos do PS (incluindo os da geringonça’ de esquerda) praticamente esqueceram o interior e nunca fizeram nada para contrariar a discriminação pelas elites, sobretudo as de Lisboa, de quem migra desses territórios desfavorecidos para o litoral em busca de uma vida melhor, particularmente quem tenha algum sotaque. Muitos que partiram do interior com esperança no olhar, encontraram também em certa escala o muro invisível da exclusão. É tempo de olhar o país por inteiro, com justiça e com afeto. E de perceber que há constantemente valor, dignidade e talento a florescer longe dos centros do poder.
Essa discriminação acontece, nomeadamente, nos meandros da política, sendo preferidos candidatos oriundos das elites, em particular as de Lisboa, em detrimento de quem tenha nascido na ‘província’, mesmo que possua um currículo melhor. A manutenção desta cultura das elites, com a qual os partidos de esquerda compactuam, conflitua com a lógica de meritocracia de que precisamos para fazer o país avançar, retirando a esses partidos a autoridade moral para se apresentarem como arautos da igualdade.
Não basta combater a desigualdade quando ela tem rosto estrangeiro ou se expressa em critérios de rendimento; é igualmente necessário enfrentá-la quando surge entre portugueses, de forma mais subtil, mas não menos injusta – como nas desigualdades persistentes entre o litoral e o interior, que também assentam, em grande medida, em disparidades económicas.
A verdadeira justiça social exige o reconhecimento e o combate a todos os preconceitos —inclusive os que, por serem socialmente aceites ou politicamente incómodos, muitos evitam contrariar. Afinal, há partidos – senão mesmo a generalidade dos partidos – profundamente enraizados nesse sistema de elites que procuram preservar. O exemplo dado por muitos dos seus representantes pouco contribui para a credibilidade do discurso sobre combate às desigualdades, dando pertinência à expressão ‘esquerda caviar’, pelo contraste entre as palavras e os atos de muitos líderes dessa área. Do outro lado do espectro político, a expressão análoga será ‘direita champanhe’, mas é menos usada, pois como o discurso sobre as desigualdades é menos marcado – embora exista –, o contraste face à ação é menor.
A outra parte da narrativa de Ventura reporta-se à suposta ‘inversão’ ou substituição demográfica – de portugueses por estrangeiros –, que cai facilmente por terra olhando para a nossa história de multiculturalidade e mistura de povos, parte integrante da matriz portuguesa.
Uma nação que mistura vários povos e culturas desde a sua génese
Essa narrativa é falsa, ignorando a mistura de povos e culturas que faz parte da nossa identidade, tanto os que passaram pelo nosso território até à fundação do Reino de Portugal (em 1143), como os que mais tarde contactamos no tempo dos Descobrimentos, e que também deram origem a vagas de imigração após a descolonização – os ‘retornados’ e descendentes no pós 25 de abril de 1974, e a imigração africana dos PALOP (a das décadas de 1980 e 1990, e a dos estudantes e qualificados desde os anos 2000).
Lembro que a nossa grande Diáspora inclui ainda várias vagas de emigração – para o Brasil, ainda durante a monarquia, e para países ricos da América do Norte (EUA e Canadá) e, sobretudo, da Europa (como França, Alemanha e Suíça), com realce para as décadas de 1950/60/70 e após 2008, na sequência da crise financeira internacional e da “grande recessão” –, que também se integraram nos países de acolhimento.
Temos, por isso, um dever recíproco de acolhimento, mas tendo em conta as necessidades da economia e a capacidade de integração dos imigrantes, de forma digna, a cada momento, como sublinhei acima.
Temos, sobretudo, o dever, enquanto cidadãos e eleitores, de exigir aos nossos governantes reformas estruturais para que a economia cresça a um ritmo superior, pois tal contribuirá para uma maior dinâmica populacional nas suas várias componentes, incluindo uma redução da emigração – que é, sobretudo, dos nossos jovens em idade reprodutiva, o que depois se reflete numa menor natalidade –, como mostra um estudo da Faculdade de Economia do Porto (FEP), em que suportei a análise da crónica referida.
O estudo da FEP mostra que, se a economia portuguesa tivesse crescido 2,4% ao ano entre 1999 e 2022 (a média simples das taxas de crescimento dos países da União Europeia, UE), em vez de 1% ao ano, em média (o terceiro pior valor da UE), em 2022 Portugal teria mais um milhão de pessoas, pois a maior dinâmica económica teria permitido mais nascimentos, menos mortes (maior saldo natural), mais imigração e menos emigração (maior saldo migratório).
Elevar o potencial de crescimento económico fará muito mais pela queda da emigração do que quaisquer medidas avulsas e de eficácia duvidosa, como o IRS Jovem, que é muito custoso, gera injustiça fiscal e já não exige a escolaridade obrigatória – o que torna esta exigência ‘letra morta’ e favorece o abandono escolar –, sendo preferível um regime unificado de retenção e atração de talento acessível a todos, como defendo.
Entre outros resultados, o estudo da FEP mostra que, se a economia portuguesa tivesse crescido 2,4% ao ano entre 1999 e 2022 (a média simples das taxas de crescimento dos países da União Europeia, UE), em vez de 1% ao ano, em média (o terceiro pior valor da UE), em 2022 Portugal teria mais um milhão de pessoas, pois a maior dinâmica económica teria permitido mais nascimentos, menos mortes (maior saldo natural), mais imigração e menos emigração (maior saldo migratório). Um maior potencial de crescimento pressupõe mais imigração num país envelhecido, o que alarga a dimensão do mercado interno e cria mais oportunidades de emprego para todos (portugueses e imigrantes), explicando porque baixa a emigração.
Face a estas dinâmicas, a presença de crianças estrangeiras nas escolas resulta, além do saldo natural negativo e da necessidade de imigração para suprir as necessidades de mão-de-obra, de uma taxa de fertilidade que é superior entre os imigrantes, refletindo diferenças culturais, mas também a emigração de muitos dos nossos jovens, sobretudo por falta de condições económicas para terem uma vida decente no nosso país, que lhe permita condições para cá constituir família e ter filhos.
O adiamento de reformas estruturais cruciais para o aumento da competitividade e do nível de vida significou menos rendimento dos casais e menor possibilidade de terem filhos, bem como menos receita fiscal para financiar uma política de natalidade mais robusta, incluindo um SNS com maior capacidade de resposta na área da obstetrícia.
Fica, pois, claro que a nossa crescente necessidade de imigrantes decorre da incapacidade persistente de criar condições para fixar e aumentar a população – temos, ao longo do tempo, elegido governos pouco ambiciosos, avessos a reformas e inclinados a desperdiçar oportunidades, desde logo o impulso proporcionado pelos fundos europeus –, acabando por depender do exterior para colmatar fragilidades que são, em larga medida, da nossa própria responsabilidade.
A presença de crianças estrangeiras resulta ainda do reagrupamento familiar, que faz parte de uma integração bem-sucedida e está protegida na Constituição e na legislação europeia, pelo que é preciso cuidado na mudança da lei pretendida o governo, embora alguns argumentos pareçam razoáveis.
Ou seja, no futuro continuaremos a precisar de imigração, se quisermos que a economia cresça a maior ritmo e nos aproximemos do nível de vida dos países mais ricos da UE. Nesse caso, haverá mais rendimento para os casais residentes no nosso país – portugueses, incluindo naturalizados, e imigrantes – terem filhos, e mais recursos públicos para reforçar a política de natalidade.
Portugal sempre foi – e terá de continuar a ser – uma mistura de povos que moldaram profundamente a nossa cultura, a nossa língua e a nossa identidade coletiva. Foi dessa diversidade, construída com tempo e convivência, que nasceu a identidade portuguesa.
Essa mistura foi recentemente enfatizada no discurso de 10 de junho do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O Presidente mencionou que, ao “recordar os quase 900 anos da pátria comum”, tem “orgulho naqueles que a fizeram, vindos de todas as partes: gregos, fenícios, romanos, germânicos, nórdicos, judeus, mouros, africanos, latino-americanos e orientais (…) e, desde as raízes, lusitanos, lioneses, burgonheses, gauleses, e saxões, os mais antigos aliados políticos. Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura, em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro”.
Isto significa que parte das nossas raízes é também árabe, o que releva na minha análise dos apelidos árabes de crianças citados por André Ventura, que não vou mencionar em concreto por respeito e para evitar mais agitação, mas consigo na mesma evidenciar a grande incoerência do Chega.
A polémica dos apelidos estrangeiros desmontada pela onomástica
Os populismos combatem-se com análise informada, pelo que é esse o contributo que aqui deixo, procurando desmontar a falácia dos argumentos do Chega também na origem dos apelidos.
Se é verdade que os apelidos árabes de crianças citados por André Ventura não são comuns em Portugal, não é menos verdade que temos vários apelidos e nomes próprios portugueses com origem na língua árabe – incluindo em deputados conhecidos do Chega, como a própria Rita Cid Matias, envolvida na polémica – e em muitas outras línguas.
Impõe-se, por isso, uma breve análise da onomástica, o estudo dos nomes e da sua origem, em particular a antroponímia, o ramo que estuda a origem dos nomes das pessoas, tendo ainda em conta a toponímia, o ramo que analisa os nomes dos lugares, dado que muitos nomes próprios derivam daí.
Em primeiro lugar, após pesquisar o significado de cada um dos apelidos em árabe mencionadas por Ventura, posso dizer que temos em Portugal apelidos que querem dizer o mesmo nos vários casos – embora não derivando dessas palavras em árabe –, o que não é de admirar, pois a formação de nomes tem características comuns entre línguas e importamos muitos termos árabes para o português.
Em segundo lugar, de realçar que temos vários apelidos (nomes de família) e nomes próprios portugueses oriundos do árabe, como Abel, Albuquerque, Almeida, Bordalo, Cid, Fátima (nome de uma das filhas do profeta Maomé), Leonor e Viegas. Outros têm inspiração árabe, como Mourinho (derivado da palavra “mouro”, intermutável com “árabe”), apelido de um famoso treinador português de futebol.
O deputado André Ventura nasceu em Algueirão, uma freguesia do concelho de Sintra cujo nome tem origem árabe (como muitas das palavras portuguesas com o prefixo ‘al’). É, por isso, provável que, à semelhança de uma boa parte dos portugueses, o deputado tenha ascendentes longínquos dessa origem. Se o apelido Ventura tem origem latina, já o nome próprio André deriva do grego.
A deputada Rita Cid Matias deveria saber que Cid – sobrenome da parte da mãe – também é um nome de origem árabe (seid, sayyid, que significa “chefe, senhor”), a mesma dos nomes de crianças que referiu. O apelido Matias vem do hebraico, enquanto o nome próprio Rita deriva do latim, mas com raízes gregas.
O deputado André Ventura nasceu em Algueirão, uma freguesia do concelho de Sintra cujo nome tem origem árabe (como muitas das palavras portuguesas com o prefixo ‘al’). É, por isso, provável que, à semelhança de uma boa parte dos portugueses, o deputado tenha ascendentes longínquos dessa origem. Se o apelido Ventura tem origem latina, já o nome próprio André deriva do grego.
O deputado Pedro Frazão, Vice-Presidente do Chega, também tem um apelido com origens árabes.
Chamo ainda a atenção que vários dos apelidos árabes citados por André Ventura e Rita Matias podem ser usados em comunidades muçulmanas do subcontinente indiano, que o Chega tem visado de forma mais insistente nas suas exaltações populistas a respeito da imigração, pelas maiores diferenças culturais.
Convém, por isso, lembrar que o deputado do Chega Gabriel Mithá Ribeiro, filho de pai católico e mãe islâmica, tem ascendência africana, indiana e síria, sendo o sobrenome Mithá de origem indiana – curiosamente, este deputado afirma que o racismo não existe em Portugal, o que parece ser contraditório com a política agressiva e divisionista a respeito da imigração do partido em que milita.
Sendo o conjunto de deputados do Chega uma amostra da população portuguesa, é natural que reflita a diversidade étnica e cultural da nossa história, acima aflorada. Convinha, por isso, conhecerem melhor as origens dos próprios nomes antes de caírem em posições contraditórias com a história do país e a deles.
Se o problema do Chega é os apelidos serem estrangeiros numa escola portuguesa, pergunto se André Ventura teria seguido a mesma abordagem caso fossem antes de origem europeia e pertencentes a famílias de elite ou com rendimentos elevados. Presume-se que não, até porque temos há muito tempo colégios privados em que se ensina em inglês, francês e alemão, onde certamente haverá um número relevante de crianças oriundas de famílias dos países correspondentes – é certo que não são escolas públicas (financiadas com impostos), mas deveriam também ser estudadas pelo Chega para sustentar a suposta ‘inversão demográfica’ em Portugal.
De facto, vários apelidos usados em Portugal têm origem europeia, seja mantendo a forma original, como Bettencourt (França), Baumgartner (Alemanha), Van Zeller (Países Baixos), O’Neill (irlanda) e Spínola (Itália), ou tendo sido ‘aportuguesados’, como Borges, com provável origem francesa, e vários de origem espanhola (nomeadamente, Rodrigues e Souto), só para dar alguns exemplos.
Também neste caso de apelidos europeus encontramos representação nos deputados do Chega, designadamente em José Dotti (origem italiana), João Tilly e Manuela Tender (origem inglesa).
Acresce que muitos apelidos de origem europeia em Portugal, sobretudo os de centro e norte da Europa, são de famílias ricas, concluindo-se que, nesta matéria em concreto e na imigração em geral, o Chega é “forte com os fracos e fraco com os fortes”, destoando do confronto que apregoa com os mais poderosos e o sistema político, sobretudo em matéria de combate à corrupção.
Conclusão
Portugal deve orgulhar-se da sua identidade plural, construída ao longo dos séculos por contribuições de diferentes povos e culturas. Ao invés de usar nomes estrangeiros como pretexto para divisões e exclusões, devemos reforçar a ideia de que a nossa cultura é enriquecida justamente pela diversidade, e que continuarão a ser aportuguesados nomes vindos de fora, num processo que faz parte da nossa identidade.
A mistura de povos que é Portugal desde a sua fundação deita por terra a narrativa de ‘substituição demográfica’ que os deputados do Chega André Ventura e Rita Cid Matias pretenderam evidenciar com a leitura de apelidos árabes de crianças numa escola portuguesa. A contradição é tanto maior quanto o sobrenome “Cid” da deputada e o apelido de Pedro Frazão (vice-Presidente do Chega) têm origem árabe, sendo ainda de relevar que o líder André Ventura nasceu na freguesia de Algueirão, nome vindo do árabe, podendo assim ter ascendentes longínquos árabes, à semelhança de uma boa parte dos portugueses.
Aconselho os deputados do Chega a estudarem as próprias árvores genealógicas e a origem das suas famílias e apelidos antes de se pronunciarem sobre a população estrangeira de forma divisionista. Podem chegar à conclusão de que a sua existência se deve a uma maior tolerância dos antepassados portugueses para com quem vem de fora. Sugiro ainda que deixem de usar as crianças com instrumento de luta político-partidária, pois não ganhará votos e poderá causar danos reais na vida das famílias em causa.
Quanto ao enviesamento dos critérios de admissão escolas (e creches) em favor dos imigrantes, propalado por Ventura, é manifestamente falso, mas se quiserem que os baixos rendimentos em geral – incluindo dos imigrantes – deixem de integrar esses critérios, então proponham medidas concretas no Parlamento, de forma serena, em vez de montarem um ‘circo mediático’ em torno de crianças de famílias vulneráveis. Tal mostra um Chega “forte com os fracos e fraco com os fortes”, pois não mostraram apelidos estrangeiros do centro e norte da Europa, geralmente de famílias ricas em Portugal, que haverá em colégios privados.
O governo deveria demarcar-se de posições que não são consentâneas com uma Democracia liberal e tolerante, para não alimentar uma degradação ainda maior da discussão política e porque está a negociar matérias importantes, como a imigração, precisamente com o Chega, que é ainda um partido ‘adolescente’, tendo crescido mais rápido em número de deputados do que em maturidade, precisando, por isso, do acompanhamento de um ou mais ‘adultos’ do nosso sistema político, leia-se PSD e PS.
O governo deveria demarcar-se de posições que não são consentâneas com uma Democracia liberal e tolerante, para não alimentar uma degradação ainda maior da discussão política e porque está a negociar matérias importantes, como a imigração, precisamente com o Chega, que é ainda um partido ‘adolescente’, tendo crescido mais rápido em número de deputados do que em maturidade, precisando, por isso, do acompanhamento de um ou mais ‘adultos’ do nosso sistema político, leia-se PSD e PS.
Estes devem ter a humildade de aprender algumas coisas com o ‘adolescente’ Chega, que tinha razão no descontrolo da imigração, mas que a perderá se insistir em divisionismos desumanos e na restrinção excessiva desse fluxo, desligada da economia, pois então esta encolherá e a receita fiscal também – sobrando ainda menos dinheiro para financiar o seu programa eleitoral irrealista, que já aqui analisei.
Do governo exige-se, sobretudo, a adoção de reformas estruturais que elevem, de forma decisiva, o potencial de crescimento da economia, pois só assim nos aproximaremos da metade de países com maior nível de vida da UE e conseguiremos atenuar de forma expressiva a emigração dos nossos jovens.
Os partidos de esquerda, desde logo o PS, além de terem de assumir claramente a culpa no descontrolo da imigração – evidente nos números de estrangeiros divulgados recentemente pela AIMA –, devem ainda parar de condicionar a atuação da polícia no discurso político, para que exerça as suas competências em matéria de segurança de uma forma efetiva, sem esses condicionalismos.
Tal comporta rusgas em zonas de risco, onde pode haver imigrantes (até para sua segurança), como a que aconteceu recentemente e foi tão criticada à esquerda. A nova unidade de policiamento de fronteiras, inserida na PSP, que irá lidar sobretudo com imigrantes, requer esse respaldo político também da oposição.
Aos partidos de esquerda exige-se ainda que combatam a discriminação não apenas em matéria de rendimento e imigração, mas também entre portugueses do interior – que esqueceram enquanto estiveram no governo – e as elites de Lisboa.
Portugal precisa de controlar a imigração em função da economia e capacidade de absorção a cada momento, pondo fim a um período recente de descontrolo – que terá alimentado a economia paralela e redes de imigração ilegal –, mas continuará a precisar de um fluxo regular de imigrantes no futuro, para contrariar os efeitos do envelhecimento da população e permitir que todo o país possa alcançar um maior nível de vida e bem-estar.
Somos e seremos uma mistura de povos e de nomes, e devemos ter orgulho nessa identidade multicultural e tolerante, independentemente do discurso político divisionista que alguns querem passar.
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Portugal, uma identidade construída a partir da diversidade
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