
Portugueses Puros
Portugal está confrontado com forças da direita radical, com discursos da extrema-direita, com o ruído dos populismos.
A ideia de pureza é um conceito politicamente tóxico. A ideia de mistura fina é um conceito politicamente ideal. Entre o tóxico e o ideal não se pode definir a identidade de um país. A ideia de pureza leva à eliminação dos impuros. A ideia de mistura fina leva à celebração de um mundo ideal. No limite, a pureza politicamente tóxica manifesta-se na exclusão de toda a diferença. No limite, a mistura fina manifesta-se na inclusão de toda a diferença.
Um país que pretende definir a sua identidade pela exclusão de toda a diferença ou pela inclusão de toda a diferença, não está a evocar uma identidade comum, mas está certamente a definir as linhas que demarcam uma guerra cultural entre duas nações que nunca se encontram. A democracia não é o ponto de equilíbrio para todos os acidentes da história, mas o campo por excelência para o conflito, para a dissidência, para uma disputa infinita entre o que significa ser português no presente e no futuro. A questão que verdadeiramente se coloca pode ser resumida numa pergunta directa – Como discordar das opiniões do outro sem cair no discurso do ódio?
O país dos brandos costumes, o clássico volátil do português suave, talvez seja apenas uma invenção do antigo regime para celebrar uma unidade identitária que não existe ou para celebrar uma superioridade europeia que não existe. A democracia portuguesa foi surpreendida por episódios de violência verbal e física que colocam em causa este entendimento pacífico. “O que é que estás aqui a fazer? Cala-te traidor! Vai para a tua terra!” – Palavras que rasgam uma comunidade de destino. Provocações à entrada de um teatro que leva à cena uma peça sobre Camões e que terminam com agressões gratuitas e sangue na calçada portuguesa.
Um português que pergunta a outro português o que é que ele faz no país que lhes pertence, tal significa politicamente o reconhecimento do estado-nação caracterizado por uma cultura comum. Mas quando um português manda outro português para a sua terra quando ele está na terra que lhe pertence, temos a manifestação de um nacionalismo xenófobo e de uma exclusividade nativista. Quando em nome do sangue e da honra um português agride outro português porque este se terá apropriado da pureza da nação através da figura de um poeta símbolo da portugalidade, então o mistério de ser português recolhe a uma ideologia que se apropria dos símbolos nacionais como projécteis identitários. O poeta Camões símbolo do nativismo não pode ser o poeta Camões símbolo do cosmopolitismo. O encontro de culturas é um jogo político de soma nula que implica a anulação do outro.
Todos estes acontecimentos nos remetem para uma direita radical e uma extrema-direita perfeitamente activas e integradas na clandestinidade luminosa da vida democrática. Sempre observadas como uma espécie de fragmentos alucinados no tempo de um “fascismo” perdido, radicais ou extremistas pertencem ao presente e têm uma mensagem para as gerações futuras. A normalização do Chega pelo sufrágio eleitoral poderá ter certamente alguma relação com a nova visibilidade deste fenómeno. Significa que o “fascismo” está de regresso a Portugal e à Europa? Será o “fascismo” uma espécie de “patologia democrática”?
Convém distinguir duas noções que são sempre confundidas – a diferença entre a direita radical e a extrema-direita. A extrema-direita rejeita a democracia, a soberania do povo, a regra da maioria. Ao rejeitar o consenso democrático, a extrema-direita é revolucionária e apologista da violência como instrumento de acção política. Em suma, a extrema-direita não confia no poder do povo. A direita radical aceita na essência o jogo democrático, mas opõe-se frontalmente a certos elementos característicos da democracia liberal – o direito das minorias, a regra da lei, a separação de poderes. Ao aceitar com limitações o jogo democrático, a direita radical apresenta-se à cidadania como “reformista”. A direita radical confia no poder do povo. A grande tendência na Europa é a aproximação e sobreposição entre direita radical e extrema-direita, uma espécie de síntese política contra a “melancolia democrática”.
Uma nota sobre o populismo. O populismo é uma ideologia que divide a sociedade entre dois grandes grupos antagónicos – o povo puro e a elite corrupta. Os populistas acreditam que a política deve ser a expressão da vontade do povo puro. Em teoria, os populistas podem ser pró-democracia, mas serão sempre antidemocracia liberal. A extrema-direita não é nunca populista porque será sempre antidemocrática.
Se dúvidas existissem, Portugal está confrontado com forças da direita radical, com discursos da extrema-direita, com o ruído dos populismos. A grande interrogação é saber se a democracia se vai esconder atrás das palavras.
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