Quando a China apanha uma pneumonia, o mundo só se constipa?

Desta vez, uma pneumonia na China pode mesmo levar a algo mais do que uma constipação no resto do mundo.

Em setembro de 2008 a economia mundial parou quando a falência do Lehman Brothers levou a uma paragem súbita do sistema financeiro. Irá agora o novo coronavírus ter o mesmo impacto, mas desta vez através da indústria, com as cadeias de valor cada vez mais espalhadas pelo mundo, e também mais difíceis de compreender?

Ainda é muito cedo para ter conclusões muito fortes quanto ao impacto na economia global, tendo em conta a propagação da doença, e a eventual resposta por parte dos governos. De qualquer forma, é cada vez mais evidente que depois de um final de 2019 e início de 2020 relativamente auspiciosos e com menos incerteza política, o surgimento da epidemia do CNV19, e a forma como afetou a China e se está a espalhar pelo resto do mundo levarão a economia mundial (pelo menos) para perto de uma recessão.

Como sempre, os economistas tentam estimar os impactos deste tipo de eventos olhando para o passado recente. No entanto, a situação mais comparável, a epidemia do SARS em 2002/2003 peca por defeito já que não só teve uma duração e impacto bastante mais reduzidos, mas também a economia chinesa tem agora um peso muito maior na economia mundial.

Desde então, o peso do PIB Chinês quase que triplicou, passando de 6% do PIB mundial para 17% em 2019. Para além disso, como se tem visto nas últimas semanas, a propagação não está confinada à China ou ao continente Asiático Ainda que o impacto humano do vírus e a duração da epidemia sejam incertos, é já possível aferir que as restrições de viagens e de trabalho terão algum impacto nas economias ocidentais. A começar pela economia europeia.

E tem sido isso que os mercados financeiros têm vindo a incorporar. As matérias primas foram (como quase sempre) as primeiras a reagir, com quedas apenas comparáveis ao verificado em 2008/2009. As taxas de juro das obrigações do tesouro americanas desceram para o valor mais baixo de sempre, atingindo 1.1% nos 10 anos. E os mercados de ações que estavam num clima de alguma euforia com a recuperação dos indicadores económicos no final de 2019 reagiram como só costumam fazer em períodos de recessão.

Queda do índice acionista S&P 500 desde o máximo

Como se vê no gráfico em cima, o principal índice de ações americano caiu cerca de 12% desde o máximo, algo que ainda que fique aquém do verificado na altura da falência da Lehman Brothers, é já comparável ao rebentar da bolha das tecnológicas em 2001, ou ao verificado no inicio da década de 90 –- períodos em que a economia americana, e mundial, entraram em recessão.

Mas estarão os mercados certos ou a reagir demasiado?

Já começam a surgir alguns indicadores económicos que incorporam o impacto do vírus. E a informação é tudo menos encorajadora. Como mostra o gráfico em cima, os indicadores mensais da industria e dos serviços (PMI) relativos a fevereiro para a China mostram, uma queda para valores mínimos, pior do que o verificado durante a crise de 2008/09. O índice da indústria caiu para 35.7 e o dos serviços para 28.9.

E ainda que se possa argumentar que a produção já está a recuperar em algumas zonas, à medida que a doença vai sendo controlada na China, está ainda muito abaixo do normal, até porque com um endividamento cada vez maior, muitas das empresas cuja produção foi afetada pelo surto, poderão mesmo vir a fechar permanentemente.

Indicadores como o consumo de carvão (uma indicação do estado da produção industrial) estão entre 30% e 40% abaixo do verificado normalmente nesta altura do ano. Por outras palavras, a China está em recessão. E isto é algo já assumido por alguns economistas. Ainda este fim de semana, os economistas da Bloomberg estimaram que o PIB Chinês possa ter contraído 3% no primeiro trimestre deste ano. Algo nunca visto e com consequências para o resto do mundo.

PMI da Indústria e dos Serviços, China

A OCDE foi a primeira instituição a rever as suas estimativas globais, prevendo agora que a economia mundial cresça apenas 2.4%, abaixo da anterior estimativa de 2.9%. Parece pouco, mas para se ter uma noção de quão baixo é este crescimento, basta ver que em 2008, num período em que os EUA já estavam em recessão e outros países desenvolvidos caminhavam para tal, o crescimento global foi de 3%.

Ainda existem poucos indicadores disponíveis que incorporem a informação mais recente, mas pelo menos a economia americana já deu sinais de que a travagem abrupta da economia chinesa já se está a fazer sentir.

O indicador mensal da industria americana (ISM) relativo a fevereiro que mostrou uma queda para 50.1, bastante perto do limiar de 50 que indica expansão ou contração. Se tivermos em conta que na última semana de fevereiro a situação se agravou e que nas próximas semanas se podem antecipar mais restrições de circulação, é relativamente fácil de antever uma queda para valores abaixo de 50, sinalizando assim uma recessão no sector industrial americano.

Na Europa, os dados relativos a fevereiro mostraram ainda alguma recuperação face aos meses anteriores. O PMI da indústria da área do Euro, manteve-se abaixo de 50 (49.2), mas ainda assim, o valor mais alto do último ano. Dificilmente continuará a tendência tendo em conta não só o impacto da industria chinesa, mas também já tendo em conta o que se tem passado na Europa ao longo da ultima semana.

Crescimento do PIB (%)

Fonte: FMI e OCDE

E com a economia mundial perto de uma recessão, o que deve ser feito?

Os governos devem intervir, tal como aconselha a OCDE. Um choque desta natureza requer principalmente a intervenção da política orçamental, mas não há respostas milagrosas. Como estamos perante um choque com impacto quer na oferta quer na procura, há pouca margem para a politica económica impedir uma recessão no curto prazo.

A política económica pode, e deve evitar efeitos permanentes desta crise e também evitar o contágio entre setores. Os governos e bancos centrais deverão para já garantir a máxima liquidez, quer para as empresas mais expostas à economia chinesa e mais afetadas pela quebra das cadeias de valor, quer pelas restrições de movimentos que já ocorrem principalmente na Europa. Devem igualmente garantir financiamento para os países que estão mais afetados pelo surto e garantir que não serão as restrições orçamentais a impedir o seu controlo.

Ao contrário de 2008/2009, parece haver uma maior coordenação internacional logo no imediato. Para esta semana estão marcadas reuniões dos ministros das finanças do G7 e do Eurogrupo. Estas reuniões são uma boa notícia, mesmo que ainda que não sejam anunciadas já medidas concretas — algo natural até porque não se tem ainda uma verdadeira noção do impacto e de até onde pode progredir a doença. No entanto, ao contrário de há 12 anos, a margem de manobra é bastante mais reduzida, e pouco se pode fazer para recuperar rapidamente as cadeias de valor.

Não só os governos estão bastante mais endividados, a começar pela própria China, mas principalmente os bancos centrais têm muito menos margem de manobra. As taxas de juro estão perto de zero, ou nalguns casos até negativas e a liquidez é já ampla, em alguns casos até em demasia. Os bancos centrais com mais margem de manobra como da Austrália, e principalmente o FED, já cortaram taxas, mas estes cortes terão provavelmente maior impacto nos mercados do que na atividade económica.

Por muito que se possa desejar o contrário, pouco pode ser feito no curto prazo para evitar (pelo menos) uma forte desaceleração da economia mundial. Desta vez, uma pneumonia na China pode mesmo levar a algo mais do que uma constipação no resto do mundo.

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