Quando o escândalo rebenta num Grupo Familiar

Os maiores escândalos em grupos familiares ocorreram por lassidão e falta de supervisão dos acionistas a um líder executivo poderoso.

Todos sabemos que um dos ativos mais valiosos de um Grupo Empresarial de raiz Familiar é o nome, o apelido da Família : Rothschild, Rockefeller, Walton, Arnaut, Tata, Porsche, Agnelli, Wallenberg, Ortega, Botín, del Pino… e entre nós Amorim, Soares dos Santos, Jervell, Queiroz Pereira, Macedo Silva ou Vasconcelos da Mota. São centenas os exemplos de apelidos que carregam consigo um legado de confiança, de reputação e mesmo de status social que lhes aporta uma vantagem competitiva natural – na obtenção de financiamento, na conquista de novos negócios, no acesso a grandes decisores e empresários ou na atração de talento ao mais alto nível. O apelido certo é um ativo de valor incalculável que pode de facto mover montanhas .

Não surpreende por isso que um legado multigeracional tenha de garantir a salvaguarda da reputação da Família e do seu nome, da marca única que sustenta todo o negócio do Grupo e o seu crescimento e valorização futuros. No entanto, essa salvaguarda pode falhar. A história das grandes Famílias Empresariais está manchada com vários casos famosos em que alterações nas dinâmicas relacionais, conflitos ou pressões pessoais no seio da Família deixam de conseguir sustentar a gestão profissional, isenta, objetiva e focada na criação de valor dos negócios e do património que um grande Grupo Familiar exige. É este território muito perigoso que conduz a graves problemas, desencadeando escândalos públicos que provocam nas Famílias danos reputacionais e económicos muitas vezes irreversíveis.

É curioso analisar mais de perto este universo de escândalos porque os resultados variam imenso. Tem havido casos de Famílias que saem ilesas e até mais poderosas porque “o que não nos mata torna-nos mais fortes” . Outras conseguem recuperar o valor do negócio mas não a reputação, passam a viver sob uma nuvem negra de vergonha e debaixo duma permanente exposição mediática negativa. O papel dos media nestes escândalos é decisivo: a imprensa explora à exaustão a atração humana pelo desastre dos ricos e a produção televisiva não fica atrás, criando filmes ou séries de grande sucesso como a deliciosa saga da Família de Logan Roy em “Succession” da HBO. E por fim, como bem sabemos, algumas Famílias nunca conseguem recuperar totalmente das suas transgressões e acabam relegadas na História como eternos proscritos, como lições de advertência a Famílias com problemas para que travem a tempo e evitem cair no abismo.

Para compreender o que realmente conduz ao escândalo numa Família Empresarial é necessário ver casos concretos. Dos inúmeros exemplos que podia aqui partilhar escolhi quatro casos internacionais e um caso nacional, talvez mesmo o único caso sério que testemunhámos nas nossa vidas. O leitor terá seguramente algum conhecimento destes casos mas aqui ofereço uma análise das suas causas e efeitos e de como podem casos destes ser evitados.

1. A Família Porsche e o seu Grupo Volkswagen

Com um passado brilhante e imaculado de quatro gerações, a Família Porsche esteve no centro do famoso caso de manipulação de emissões de veículos pela Volkswagen (VW), o “Dieselgate”. Em 2015, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA verificou que os VW de motor diesel podiam detetar e manipular os resultados das emissões de gases para apresentar valores mais baixos e dentro dos limites legais. A notícia espalha-se rapidamente afetando a imagem da marca e as suas vendas em todo o Mundo. O Grupo não tem alternativa senão reconhecer o comportamento fraudulento e aceitar que, não só os motores diesel VW emitiam até 40 vezes a quantidade permitida de poluentes de óxido de nitrogênio, mas que dera instruções explícitas às áreas de comunicação e marketing do Grupo para encobrir o facto e reforçar a excelência ambiental dos motores.

Os efeitos foram devastadores – multas judiciais bilionárias, indemnizações a milhares de clientes e queda de 37% do valor do Grupo VW em bolsa. O CEO Martin Winterkorn é despedido e o duríssimo Ferdinand Piëch é nomeado para o seu lugar. Neto do fundador Ferdinand Porsche e primo do genial designer F.A. “Butzi” Porsche ( o pai do intemporal 911), deve-se a Ferdinand Piëch o brilhante programa desportivo da marca que levou a um domínio absoluto de Le Mans durante décadas – só possível pelo duro regime militar imposto na sua área, nos escritórios como na pista.

A marca VW nunca recuperou a fantástica reputação nem a quota de mercado que tinha, levando o Grupo a privilegiar o apoio a outras marcas como a Skoda ou a Audi para tentar compensar a perda. A entrada da Família para a gestão executiva através de Ferdinand Piëch não foi no entanto pacífica e novos escândalos propagados pelos trabalhadores levaram anos mais tarde à demissão de Piëch e à nomeação do gestor não-familiar Oliver Blume que acumula hoje a liderança executiva dos dois Grupos VW e Porsche. Saturada com a autocracia de Piëch a Família quer paz e tranquilidade e compreende que só o conseguiria com um profissional externo talentoso e emocionalmente estável. Piëch passa a Chairman do Grupo até à sua morte em 2019, dois anos antes do primo “Butzi”.

2. A Família Tanzi e o Grupo Parmalat

Fundada em 1961 por Calisto Tanzi, um brilhante, carismático e altamente popular empresário de Parma, o Grupo nasce centrado na marca Parmalat e na sua vasta gama de lacticínios, tornando-se numa das maiores empresas italianas do setor alimentar e um conglomerado multinacional com 214 subsidiárias em 48 países. Mas a energia e ambição de Calisto Tanzi nunca poderia ser satisfeita com leite queijo e iogurtes. O Grupo começa a diversificar interesse para outras áreas e neste contexto assume um papel de relevo no panorama do futebol europeu nos anos 90 – comprou o AC Parma e elevou-o aos níveis mais altos do estrelato europeu, negociou passes de grandes jogadores como Zola, Stoichkov, Crespo ou Thuram e patrocinou clubes de primeiro nível nos mercados onde a marca Parmalat estava presente, trocando jogadores entre clubes desta constelação que incluiu o SL Benfica onde graças à Parmalat alinharam estrelas como Claudio Caniggia ou Edilson.

Quando o desempenho financeiro da empresa derrapou em 1990, Tanzi e a sua equipa executiva montaram um esquema de fraude e conspiração para dissimular os défices fiscais da Parmalat. Nos 13 anos seguintes, os executivos da empresa inflacionaram a receita reportada através da criação de transações falsas e faturação duplicada e ocultaram dos investidores a crescente dívida da Empresa. Só em 2002 foram descobertos – uma equipa de analistas financeiros contratados pela Bolsa italiana começaram a suspeitar que havia algo de estranho nas contas da Parmalat e lançaram uma auditoria profissional que colocou o esquema a nu e todos os seus detalhes … e um buraco de 14 biliões de Euros, uma dimensão nunca vista na Europa

Em resposta às muitas alegações de impropriedade financeira, a empresa tentou ocultar o seu comportamento fraudulento com a tática da fuga para a frente, engendrando novas atividades fraudulentas. Mas a situação era insustentável : no final de 2003 a Parmalat entrou em colapso e foi declarada falida. Pelo seu papel naquele que foi considerado o maior escândalo de falência empresarial da Europa, Calisto Tanzi foi condenado a 18 anos de prisão. Crivada de problemas e dívidas, a Família Tanzi perdeu tudo e o Estado tomou conta do Grupo para o liquidar e minimizar as perdas dos financiadores. Hoje, a Parmalat ainda existe integrada na maior multinacional de laticínios do mundo, a Lactalis e o AC Parma caiu a pique com a insolvência dos seus donos, atravessou as ruas da amargura nas ligas inferiores durante anos mas recuperou: este ano vencerá a Serie B e voltará, tantos anos depois, ao convívio dos grandes de Itália na Série A.

3. A Família Lee e o Grupo Samsung

Em 2017, Jay Y. Lee, herdeiro do grupo Samsung controlado pela sua Família, foi preso por oferecer subornos para executar uma fusão que o ajudaria a reforçar o seu controlo pessoal sobre o conglomerado multinacional sul-coreano. Os promotores provaram o envolvimento direto de 17 executivos do Grupo … e até da própria Presidente da República da Coreia do Sul Park Geun-hye, afastada do cargo por impeachment pelo seu papel no escândalo. Após a sua condenação, Jay Y. Lee tentou reduzir a sentença aplicada de 5 anos por suborno, peculato e ocultação de ativos no exterior, apresentando um pedido de desculpas público e prometendo eliminar a Família do futuro do Grupo, garantindo que os seus filhos não herdariam cargos de gestão na empresa. Em 2022 Lee é libertado mas, não obstante as promessas, a Família vota à gestão com o regresso imediato de Lee à sua posição como presidente executivo da Samsung.

4. A Família Bettencourt e o Grupo L´Oréal

Em 2007, Françoise Bettencourt Meyers, herdeira do império de cosméticos L’Oréal e neta do seu fundador, Eugène Schueller, abriu um processo crime contra um homem que considerava estar a aproveitar-se da mãe, Liliane Bettencourt, de 84 anos, na altura a mulher mais rica de França e uma das maiores fortunas europeias. Meyers afirmou que ao longo de 25 anos viu sua mãe esbanjar uma fortuna com o romancista e fotógrafo François-Marie Banier em particular com uma longa série de presentes caros de valor superior a 1,000 M Euros. Além disso, Meyers alegou que Banier estava a tentar separar a família Bettencourt, chegando ao ponto de pedir a Liliane Bettencourt que o adotasse, tornando-se irmão de Françoise Meyers co os mesmos direitos.

A brutal cobertura dada pelos media ao caso Bettencourt leva a investigações paralelas nas quais se descobre que a generosidade de Liliane Bettencourt ia muito para além de Banier, nomeadamente em doações a altas individualidades políticas como Sarkozy ou Hollande em envelopes volumosos com somas muito para além dos limites legais. O caso Bettencourt, centro absoluto das atenções dos franceses durante quase uma década, só terminou quando a filha Françoise Meyers venceu Banier em tribunal e este foi condenado a três anos de prisão. No entanto, não surpreende que a unidade da Família tenha ficado ferida para sempre – as relações entre Françoise Bettencourt Meyers e a mãe mantiveram-se cortadas até à morte de Liliane Bettencourt, em 2017.

Com a morte da mãe e sendo herdeira única já aos 70 anos, Françoise Bettencour Meyers recebe uma fortuna superior a 100,000 M€ e é hoje a mulher mais rica do Mundo. O marido Jean Pierre e os seus dois filhos participam com Françoise na gestão da holding financeira da Família, Thetys, que detém 34% do Grupo e uma parceria coma Nestlé que controla 23% do Grupo.

5. A Família Espírito Santo e o Grupo BES

Ao investigar a situação em Portugal, tiramos duas conclusões curiosas. Primeiro, todos os escândalos dos últimos vinte anos aconteceram no setor financeiro, demonstrando uma fragilidade, ineficácia e complexidade dos mecanismos de supervisão e controlo da governação das instituições pelo Banco de Portugal que abre o apetite a condutas criminosas, apetite esse reforçado pela impunidade decorrente de uma justiça inoperante. Segundo, existe apenas um caso de escândalo que envolve um Grupo Familiar – e a sua dimensão não tem paralelo, tanto pelas causas na Família como pela solução imposta pelo Estado sob cobertura do BCE..

De 2007 a 2012, Portugal regista quatro casos graves de conduta imprópria de nomes reputados da banca nacional, BCP, BPP, BPN e BANIF, dos quais três insolvências – uma situação completamente invulgar em qualquer País e que custou uma fortuna aos contribuintes. Mas não são escândalos comparáveis com os casos internacionais que vimos… e nenhum foi protagonizado por uma Família. Esse viria a seguir e terá sido porventura o maior escândalo de um Grupo Empresarial Português de que há memória, com consequências sem paralelo na história de Portugal das últimas décadas ou mesmo do último século: o BES e a Família Espírito Santo, marcas com uma história cuja grandeza contrasta de forma dramática com a sua estrepitosa derrocada.

Durante mais de um século, o Banco afirma-se com a referência do setor em Portugal e o apelido Espírito Santo adquire com Ricardo um élan quase aristocrático que o resto da Família brande com vaidade. Com o golpe de 1974 a Família refugia-se no Brasil e quando é convidada a voltar o jovem Ricardo Espírito Santo Salgado, quinta geração da Família e neto do icónico Ricardo Espírito Santo, assume o leme da Família e dos seus negócios.

Ricardo Salgado era um homem invulgar, mas visto por quase todos os familiares como um ser superior, admirado e inquestionável. Era de facto um líder forte, autoconfiante, dum charme irresistível e com um foco obsessivo no poder, na dimensão e no valor do seu Grupo. Embora se abrisse sempre ao diálogo, em particular nas reuniões regulares do Conselho Superior, ninguém discordava das suas opiniões ou decisões. Foi neste clima dourado que o BES viveu até à crise do subprime, que Salgado desvalorizou e só reconheceu tarde os efeitos sobre o Grupo.

Sem saída, optou por começar a camuflar em holdings geridas sem grande competência ou supervisão os níveis de exposição ousados do BES. A que se vieram juntar as perdas que investimentos pouco racionais em setores não-financeiros feitos pelo Grupo ao longo de décadas – ativos dispersos que chegaram a um valor cumulativo superior a 3.000 M€ mas sem racional estratégico nem rentabilidade à altura.

A situação foi escalando sob a batuta solitária de Ricardo Salgado e um ou outro escudeiro fiel e em 2013 o Banco de Portugal lança um exercício de supervisão sobre todo o perímetro do Grupo, ficando nessa altura claro para a Família que o buraco na holding de topo ESI era de tal dimensão que o Grupo estava tecnicamente falido. Ao longo de um ano, Ricardo e os seus mais próximos tentam encontrar saídas e soluções em diálogo permanente com o Banco de Portugal, colocando mesmo com sucesso um aumento de capital do Banco que mostrou que a força da marca e do apelido estavam muito acima dos violentos ataques diários da imprensa sobre o Grupo. A liderança de Ricardo Salgado é posta em causa pelo Estado e pela Família mas ninguém tem coragem de o destituir. Em desespero de causa e sob pretexto da integração do BP no BCE, empurrado por um Banco de Portugal hesitante e sem coragem o Governo dissolve o Banco e assume a gestão dos ativos e passivos determinando o fim da marca BES. Mais uma vez com o dinheiro dos contribuintes que não tiveram palavra na sentença.

Hoje, passados dez anos, Ricardo Salgado estará doente e sob investigação por uma série de crimes, o decano Comandante Ricciardi e a maior parte da quinta geração faleceu e os primos da sexta e da sétima cultivam amizades isoladas, mas sem o pólo aglutinador que foi o BES. Falam em reconstruir o Grupo, mas o mundo mudou: o peso da marca BES e o poder do apelido Espírito Santo não são os ativos do passado, mas na realidade um passivo.

Em resumo, um escândalo enorme a qualquer escala com consequências terríveis e irreversíveis. Não há de facto muitos escândalos desta envergadura a nível internacional – desaparece um grande grupo económico nacional, um dos bancos mais respeitáveis do País, uma personalidade única cujo defeito foi não ter sido travada e pior do que tudo o apelido mais sonante de Portugal, levando gerações duma Família inteira do céu ao inferno num piscar de olhos. (Nota do Editor: O autor deste artigo de opinião foi presidente executivo da Rioforte, sociedade que foi fundada em 2010 para aglutinar participações não financeiras do grupo).

6. O que se retira afinal de comum de todos estes casos que sirva de advertência para que Grupos Familiares estejam atentos ao risco do escândalo e dos seus efeitos?

A unidade e cumplicidade no seio da Família Empresarial em torno de uma visão do Grupo, de um ethos e de valores saudáveis comuns é o fator essencial para evitar os desvios de comportamento que geram escândalos.

A par desta plataforma, juntam-se outros fatores igualmente importantes: Uma cultura de supervisão sobre a estrutura executiva, não poder nunca confiar cegamente no líder da Família se for ao mesmo tempo o Presidente Executivo e assegurar visibilidade sobre a situação real e a sua adequada supervisão e auditoria. Um líder demasiado centralizador e poderoso vai prevaricar mais tarde ou mais cedo, está na natureza humana, por isso a Família deve garantir no seu seio uma cultura de valores morais elevados que iniba o mínimo pensamento que possa ser semente de uma ação potencialmente criminosa que ponha em causa o negócio, a reputação e o bom nome da Família. Não é fácil cumprir estas condições, sobretudo se não houver um espírito cristão na Família, mas se não o forem a tentação de passar a linha vermelha vai ser demasiado grande e torna-se inevitável o risco de um escândalo altamente danoso para a Família e para os seus interesses.

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