Que o Porto não seja Lisboa

Que o espírito pragmático e empreendedor do Porto e das suas gentes sirva de exemplo e de guia para uma União Europeia carente de crescimento e de estabilidade.

Felizmente que a pandemia atingiu a União Europeia num momento especialmente pujante. Sendo, há já muitos anos, o espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo, assente no conhecimento, a UE vinha demonstrando ser capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com coesão social. Por isso, apesar da ansiedade e das perdas humanas a lamentar profundamente, o impacto da COVID-19 foi absorvido com relativa estabilidade e coerência interna. Parece mentira, não é?

Na verdade, não parece, é mesmo mentira. Do princípio ao fim. Para agravar as minhas culpas, acrescento à falta de verdade uma confissão de plágio: limitei-me a parafrasear parte das Conclusões da Presidência portuguesa no âmbito do Conselho Europeu de Março de 2000 que estabeleceram o objectivo estratégico europeu para a década seguinte. O nome de Lisboa está infelizmente associado a este fracasso – a Estratégia de 2000 – e a um remendo – o Tratado de 2007 – que pôs termo a uma crise auto-induzida e à tentativa de impor soluções simbólico-estatizantes para a União Europeia que ninguém sentia como necessárias nem urgentes.

A actual Presidência portuguesa do Conselho da UE, a primeira sob a vigência do novo Tratado, teve um dos seus “momentos Lisboa” no Porto por intermédio do Compromisso Social que visa consolidar o acordo alcançado em 2017 em torno do Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Charles Michel fez uma citação desajeitada da Grândola, Ursula von der Leyen citou Verónica, a enfermeira portuguesa, Nicolas Schmitt agradeceu a António Costa a firmeza com que colocara os direitos sociais no mapa e o próprio não deixou de frisar a abrangência e a ambição do compromisso alcançado. Mais cauteloso, como costuma ser seu timbre, o Conselho Europeu deu depois nota da sua determinação em continuar a aprofundar a aplicação nacional e europeia do Pilar, não sem salientar a necessidade de respeito pelas competências respectivas e pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.

Participei nas negociações do Pilar Europeu dos Direitos Sociais nas instâncias preparatórias do Conselho e recordo as resistências e as muitas reservas que alguns Estados-membros manifestaram sobre o documento, seja quanto à sua parte preambular seja quanto aos seus três capítulos. A sua atipicidade contribuiu para adensar as inquietações quanto à vinculatividade do seu teor e à exigibilidade directa dos direitos proclamados, tendo esses Estados sublinhado reiteradamente que não se consideravam obrigados à realização de acções ou ao cumprimento de metas concretas. A Comissão Europeia manteve a pressão para que todos os Estados dessem cumprimento ao acordado, tendo levado a efeito diversas iniciativas nesse sentido, de entre as quais avulta o Plano de Acção precisamente dedicado ao Pilar de 4 de Março deste ano.

A emergência social em que a UE se encontra mergulhada pode ter limado parte daquelas arestas e afastado reticências, mas é legítimo perguntar se elas não ressurgirão posteriormente em períodos de maior acalmia e de menor necessidade; e se ao Compromisso do Porto não poderá corresponder um destino menos exaltante, como o que estava reservado para a Estratégia de Lisboa.

O propósito, proclamado tripartidamente, de promover uma recuperação inclusiva, sustentável, justa e criadora de empregos, apoiada numa economia competitiva que não deixe ninguém para trás, só será minimamente viável se o elemento “competitividade da economia” não for menorizado. Esta proclamação servirá de pouco se a economia europeia estiolar, porque pouco haverá que distribuir e nenhuns empregos para criar. Os impulsos estatizantes de alguns fazem por esquecer o papel insubstituível das empresas e da iniciativa privada para a manutenção de um ambiente económico pujante e socialmente comprometido, como o sonhado em 2000. Sem elas, o Porto terá um destino comum a Lisboa.

Que o espírito pragmático e empreendedor do Porto e das suas gentes sirva de exemplo e de guia para uma União Europeia carente de crescimento e de estabilidade, mas também de realismo, e que o Compromisso que leva o seu nome possa significar mais um passo seguro neste esforço de recuperação. Sem qualquer bairrismo, o melhor que podemos desejar a este Porto é que não seja Lisboa.

Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.

  • Consultor para os Assuntos Europeus da Abreu Advogados

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