Talvez seja tempo de perdermos o medo da química e dos químicos, ou melhor, o medo patológico que nos impede de discutir racionalmente a melhor forma de usarmos os processos químicos.

Cerca de 40% de consumidores europeus – se admitirmos que os resultados destes estudo, feito em oito países, são válidos para a generalidade dos consumidores europeus – dizem que tentam evitar o contacto com substâncias químicas no seu dia-a-dia e dizem que gostariam de viver num mundo sem químicos.

Felizmente, não põem em prática estes desejos, o que os salva de morrer à sede em pouco tempo por evitarem o contacto com o composto químico H2O, mais conhecido como água.

Duas ou três ideias simples e intuitivas têm um enorme peso na percepção pública dos químicos sintéticos como alguma coisa intrinsecamente má.

A primeira é a ideia de que o é natural é melhor que o que é processado. No estudo citado, uma boa parte dos consumidores não sabe que o sal de mesa – o cloreto de sódio de que fala António Gedeão, em “Lágrima de preta”, um poema em que a sua qualidade de professor de Física e Química está bem presente – é igual, do ponto de vista da saúde, seja ele extraído do mar ou sintetizado numa fábrica.

A cicuta que Sócrates, o legítimo, bebeu na sequência da sua condenação à morte era um produto naturalíssimo e nem por isso deixou de o matar em pouco tempo. A cicuta é bem mais perigosa que a coca-cola industrial que conhecemos.

Natural ou sintéctico, quase tudo pode ser tóxico, mas uma parte muito grande de nós continua a pensar que o que é natural é sempre melhor, como no dia-a-dia fôssemos raspar a casca dos salgueiros para baixar a febre, em vez de ir à farmácia comprar o ácido acetil salicílico sintéctico que ajudou à fortuna da Bayer, sob o nome de aspirina.

Outra ideia generalizada, e muito prejudicial à necessária discussão sobre toxicidade, é a ideia de que as coisas são tóxicas em si mesmas, independentemente da dose. Nem os mais de 400 anos desde que Paracelso estabeleceu o princípio básico da toxicologia – é a dose que faz o veneno – foram suficientes para que esta ideia, e a sua declinação, a de que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, se tornasse consensual.

Compreende-se o desconforto do movimento ambientalista no debate sobre o uso de produtos químicos: o livro de Rachel Carson, “Silent Spring”, é uma das bases centrais dos movimentos ambientalistas modernos. O livro desempenhou um papel fulcral na limitação do abuso de produtos químicos de que hoje beneficiamos, em especial na agricultura e alimentação, tendo sido uma das mais sólidas fundações da influência social das ideias ambientais.

Por exemplo, na recente apresentação do European Green Deal, ou Pacto Ecológico Europeu, em português, duas das suas áreas de intervenção -– a estratégia Farm to fork e a eliminar a poluição, focam-se explicitamente na necessária gestão prudencial da utilização de produtos químicos.

O problema é que enquanto em documentos sólidos, como o referido Pacto Ecológico Europeu, se fala num mundo “livre de substâncias tóxicas” (uma simplificação excessiva que esquece o princípio enunciado por Paracelso acima citado, mas aceitável no contexto referido), numa boa parte da opinião pública e publicada, isto é entendido como um mundo mais próximo da natureza, isto é, livre de químicos, uma ideia totalmente absurda.

De uma posição racional com base em evidência científica, necessária para a limitação dos efeitos negativos do abuso de elementos e compostos químicos que possam ter efeitos negativos na saúde ou nos ecossistemas, passa-se a uma histeria irracional e sem base científica mínima, de que é exemplo a forma como glifosato é hoje socialmente considerado.

Pessoalmente já me confrontei com pessoas absoluta e radicalmente contra qualquer uso de glifosato, provavelmente o fitocida mais estudado do mundo sem que haja qualquer evidência sólida dos seus supostos efeitos cancerígenos, mas que voluntariamente usam tatuagens cujas tintas podem conter quatro mil substâncias que estão proibidas, ou fortemente restringidas em cosmética por não serem seguras para usar sobre a pele, incluindo substâncias cancerígenas, mutagénicas e etc..

Não tendo dados, diria que quase toda a gente com me cruzo na rua diria que os adubos sintéticos são indesejáveis e deveriam ser, tanto quanto possível, eliminados, mas poucas saberiam que a descoberta científica que isoladamente mais mortes terá poupado à humanidade é exactamente a descoberta do processo de Haber-Bosch, o processo industrial de produzir amónia a partir do azoto atmosférico que é a forma barata de produzir adubos industriais. A retirada repentina de todos os adubos de síntese que resultam desta descoberta levaria a uma queda de produção de alimentos em cerca de um terço, com os problemas que daí resultariam.

Talvez seja tempo de perdermos o medo da química e dos químicos, ou melhor, o medo patológico que nos impede de discutir racionalmente a melhor forma de usarmos os processos químicos para melhorar a vida de milhões de pessoas.

O facto de beber um copo de lixívia ser uma forma muita directa de entregar a alma ao criador não nos deve impedir de usar a lixívia para o que serve, da forma como deve ser usada e com os cuidados necessários para que não tenha os efeitos negativos que potencialmente tem.

E isto é verdade para milhares de outros produtos químicos que, dependendo da dose, nos podem ser muito úteis, ou fatais, não fazendo nenhum sentido prescindir dos aspectos positivos do seu uso, só porque, potencialmente e mal usados, podem ser perigosos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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