Ramalho Eanes cumpriu com Portugal

O tempo foi generoso com Eanes, trouxe-lhe a humanidade que sem abraços, nem selfies, nem números circenses, o aproximou e consolidou no coração dos portugueses.

Qualquer pessoa fria, profundamente racional e pouco emocional, só pode reconhecer, para lá do notável serviço público, o tocante que foi um homem de 85 anos na RTP a dizer que, se necessário, devem ser os mais velhos como ele a dar um ventilador a quem tem filhos para cuidar. Bastava este momento lapidar e genuíno para se conhecer um homem e enobrecer o quão gigante é o seu carácter.

Ramalho Eanes é uma personalidade que aprendi a respeitar e considerar. Nunca tive em miúdo e adolescente grande simpatia por ele, confesso. Parecia um homem distante, reservado. O primeiro artigo de opinião que escrevi no jornal da universidade Católica foi sobre ele e sobre o que se falava na altura de um eventual seu regresso à política, lá pelos inícios dos anos 90 do século passado.

Eanes teve conhecimento do que escrevi, não sei como, e numa conferência na Faculdade de Direito falou comigo. Simpático, educado e dizendo que não iria regressar à política numa justificação que um estudante de 21 anos não precisava de receber dele. Mas, efectivamente, não voltou, confirmando-se o que me disse. Com o passar do tempo cresceu a minha admiração por quem soube zelar pelo seu papel de ex-Presidente da República, mantendo-se discreto, só intervindo com o seu rigor intelectual quando o País o precisava de escutar, como aconteceu esta semana.

Mas não esteve sempre nos píncaros da simpatia dos portugueses e houve um tempo em que a História ditará que errou. Quando decidiu saltar de Belém para a política com a fundação do PRD. Por dois motivos: primeiro, porque Eanes era, e é, acima de tudo, um homem de Estado, um patriota e não tinha nos seus genes essa arte nobilíssima da política; depois, porque com todos os defeitos que eram muitos, Mário Soares era um político de excepção com um carisma especial nesta arena e aqui perdeu muito Portugal por os dois nunca terem morrido de amores um pelo outro. E em entrevista ao Expresso em 2007 o general reconheceu com humildade: «logo que passei a exercer actividade partidária, vi que não tinha nem predisposição nem condições – ou, se quiser, qualidades – para dirigir um partido».

Na imagética nacional Ramalho Eanes persiste como um ícone em cima do carro, de mãos à cintura, duro, de óculos, austero, lá pela campanha presidencial de 1975, a primeira vez que abandona as vestes militares. O tempo foi generoso com ele, trouxe-lhe a humanidade que sem abraços, nem selfies, nem números circenses, o aproximou e consolidou no coração dos portugueses. E essa humanidade sempre lá esteve, mas não a reconheciam porque a sua “persona” pública foi criada com o “slogan” que o levou a Belém: «Eanes cumpre», rígido, severo, granítico, pouco emocional e que sorria pouco.

A coerência é um valor raro na política. Olhem para Ramalho Eanes para perceberem o que é um percurso exemplar de cidadania após se ter afastado do poder. E os políticos, agora, que aprendam com ele. É uma imaculada referência ética que, sem floreados, se tornou um sábio que dá gosto ouvir naquelas palavras curtas, simples, eficazes por todos as compreenderem. E mostrou, como a Fátima Campos Ferreira revelou, que «nos tempos incertos, vai-se ao local», enquanto outros fugiram para casa com medo do vírus. É essa a diferença entre líderes e brincalhões, entre figuras e figurantes.

Um dia disse: «A Pátria não é a entidade pela qual valerá a pena morrer, mas pela qual vale a pena viver – pelos filhos, pelos netos, nossos e dos outros». Um homem probo, decente, despojado de vaidade, do melhor que serviu Portugal. Que um dia, daqui a muitos anos, como seu epitáfio alguém escreva: Ramalho Eanes cumpriu.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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