Retratos da Campanha

Votar é um recado ao luar que se costuma deitar num país sem destino incapaz de mudar a sorte. Votar é calçar as tábuas do palco e mudar Portugal.

Em rigor não há uma campanha eleitoral. Os portugueses têm direito a uma sucessão de dias de campanha sem sequência ou coerência. A campanha é uma corrida servida em episódios políticos. Só que os episódios não têm ligação, nexo, consistência. A lógica do dia é o escândalo político do dia. A campanha não é uma narrativa decente sobre o Portugal do futuro. A campanha é o escândalo do disparate, da estupidez, da ignorância políticas em doses diárias. Parece uma conversa de feira na esplanada de um café em fotografia na capa do Correio da Manhã. A campanha é o país tabloide servido ao país real. Uma volta a Portugal em caravana. A campanha eleitoral é o arraial da democracia.

E há de tudo. São discursos sobre a imigração, declarações sobre o aborto, negacionismo climático, activismo climático, sectarismo militante, marchas fúnebres, indignações estudadas, triunfalismos boçais, mas sobretudo um falso entusiasmo político incapaz de convencer aqueles que já se convenceram. No ruído insuportável do vazio político, a campanha eleitoral é um “apontamento de reportagem” sobre o estado da democracia e a vitalidade do regime. Pela aparência da imagem, a democracia portuguesa é uma versão demótica de um qualquer sonho de Abril. Para além da liberdade e do insulto, resta a forma porque o conteúdo evaporou-se em 50 anos.

Este objecto político cansado a que se chama campanha eleitoral é o cumprimento de um ritual. É assim porque sempre se fez assim. E como os portugueses adoram o espectáculo diário mas ignoram os detalhes do enredo político, existem horas intermináveis de comentários sobre os comentários que os políticos fizeram e não fizeram. É como se no final da exibição de um filme que ninguém entende se organizasse uma sessão de esclarecimento sobre a história que o filme parece contar. A agenda mediática está transformada numa imensa sessão de esclarecimento em que as opiniões dos comentadores substituem as posições dos políticos. Tudo parece um concurso televisivo com notas, pontuações, vencedores e vencidos, uns a subir e outros a descer. E a conclusão? Não há conclusão porque a circulação mediática recomeça do zero no dia seguinte.

Esta fragmentação democrática está bem espelhada na fragmentação dos partidos e na fragmentação dos indecisos. Com tantas opiniões e com tão poucas posições políticas sérias, a campanha é uma proliferação de improvisos diários que apelam aos instintos primários. Os discursos pertencem a um enredo maniqueísta onde existem os bons e os maus, os virtuosos e os viciosos, o progresso e o passado, a esquerda e a direita. Falam-se em pontes mas queimam-se pontes todos os dias. A esquerda passeia a sua superioridade e não dialoga com a direita. Esta atitude pseudodemocrática é uma variação à política do ódio. A direita radical na sua exuberância boçal ataca a esquerda mantendo a pureza ideológica de quem jamais partilhará uma mesa para conversações. Os dois universos que se excluem mutuamente não são uma imagem da democracia. É a política do ódio travestida de democracia.

A AD é um suspiro de moderação ao centro quando o centro é o lugar político de todos os equívocos. A AD deve definir o centro para daí partir para uma vitória eleitoral e não reciclar o centro que o PS destruiu com a frente de esquerda. Quanto ao PS está reduzido aos discursos tremendistas e reactivos onde a vitória política é garantida pela derrota política do inimigo. E o inimigo é a direita, toda e qualquer direita, tudo o que não se mexe à esquerda. É aliás uma ternura política observar o sol socialista e as pequenas luas que orbitam ao seu redor na expectativa de um governo à esquerda. Agora parece que existe um terceiro bloco que não conta para a aritmética política, parlamentar e governativa – a direita radical. Há deputados de primeira e deputados de segunda. Os deputados de primeira representam a ordem democrática. Os deputados de segunda revelam o caos antidemocrático. Vamos então “Dar de beber à desventura”.

Nesta infelicidade conjugal está o país preso pela política do unicórnio em prática no PS. Nesta incerteza filial está o país preso pela política processual ponderada no formato da AD. Nesta realidade da ingovernabilidade está o país preso pelas sereias, ninfas e duendes que habitam a floresta mágica do país da manhã. Votar é um recado ao luar que se costuma deitar num país sem destino incapaz de mudar a sorte. Votar é calçar as tábuas do palco e mudar Portugal.

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