Rumo às próximas eleições

André Ventura quebrou o dique do bipartidarismo. Transposta essa barreira, pode continuar a alimentar-se da incapacidade dos partidos do centro, se não acertarem o passo.

André Ventura tinha há muito a convicção de que os ventos populistas haveriam de cá chegar. Na Europa e um pouco por todo o mundo, a extrema-direita, nas suas diferentes matizes e graus, foi polulando parlamentos e entrando em coligações, até ser ela a vencer eleições. Bastava manter a linha e esperar pela oportunidade.

Portugal era uma espécie de reduto na Europa onde a extrema-direita populista tinha uma expressão ainda diminuta. A vaga já tinha passado os Pirinéus, agora assomou no oeste da Península.

O que sobressaiu na cobertura das legislativas nos meios de comunicação internacionais foi o enorme crescimento do Chega, que quase triplicou os votos e quadruplicou o número de mandatos para 48. Não foi propriamente uma surpresa — muitas sondagens já o apontavam — mas a materialização de 1,1 milhões de votos e um quinto dos deputados tem outro impacto.

As ciências sociais ajudarão a compreender melhor quem votou no partido de André Ventura e porquê. Uma coisa é certa, foi o Chega quem mais capitalizou o descontentamento dos que se sentem despojados pelo aumento da inflação e das taxas de juro, dos impotentes que se sentem violentados pela corrupção dos poderosos, dos que receiam a imigração e discordam dos subsídios a quem vem de fora ou não trabalha. A que se junta a franja dos ultra-conservadores nos costumes, dos que não gostam do progressismo da ideologia de género, e dos saudosistas da autoridade e ordem dos tempos da ditadura. Não é o mais votado, mas é o que mais sobe com o zeitgeist.

O crescimento do partido de André Ventura teve como consequência uma vitória da Aliança Democrática (AD) com um forte travo a derrota. A margem é tão estreita que, ao dia de hoje, essa vitória está por confirmar, aguardando-se ainda a contagem de votos no círculo da emigração, onde é esperada uma participação recorde. A coligação soma, para já, 79 deputados, juntando os eleitos pela Madeira. Como dois são do CDS-PP, o PSD conta com 77, tantos como o PS. Falta distribuir quatro deputados dos círculos da Europa e de fora da Europa. Podem ainda baralhar estas contas e até reforçar o Chega.

A vitória por uma unha negra significa que, ao contrário do que aqui se antecipava, a governação será um drama. Uma coisa são minorias relativas como as de António Guterres, em 1995 e 1999, em que teve cerca de 44% dos votos, conseguiu à volta de 10 pontos percentuais mais que o PSD e ficou a poucos deputados da maioria absoluta (faltou apenas um em 1999). Outra bem diferente é ganhar com uma margem magríssima de apenas 50 ou 100 mil votos. Não há um mandato claro e evidente atribuído pelos portugueses que os restantes partidos são compelidos a respeitar.

A direita mais moderada seguiu diferentes estratégias para lidar com o crescimento do populismo. Luís Montenegro vai optando pela via francesa ou alemã do cordão sanitário. Um acordo com o Chega seria um abraço de urso, considera.

O que tem pela frente não é menos incerto. O Governo tomará posse — o PS já garantiu que inviabilizará qualquer moção de rejeição se for o menos votado. Daí para a frente, Pedro Nuno Santos já disse que não serão os socialistas a dar a mão à AD. O Orçamento do Estado para 2025, que será apresentado em outubro, tem chumbo já assegurado pelo PS.

Ainda o resultado destas eleições não está fechado e já a pré-campanha para as seguintes está na rua. O PS empurra o PSD para as mãos do Chega. O Bloco de Esquerda procura criar uma frente unida de esquerda que sirva de alternativa ao Chega quando o Executivo cair. André Ventura faz de tudo para garantir que o eleitorado se solidariza com um derrube do Governo da AD, justificado pela “humilhação” do partido por Luís Montenegro não aceitar um acordo.

Neste cenário, Luís Montenegro tentará fazer o mesmo que Cavaco Silva em 1985. Apostar num elenco governativo com grande capacidade política para conseguir rapidamente entendimentos no Parlamento com diferentes geometrias. Terá de negociar tanto com o PS, em medidas urgentes para o PRR, como com o Chega, em temas em que os programas podem convergir. Também se poderá aproximar à IL, mas será sempre insuficiente. Há já uma evidência, noticiada pelo ECO: o partido de André Ventura vai finalmente conseguir eleger um vice-presidente do Parlamento com o apoio da AD e da IL.

A AD terá pouco tempo para aprovar medidas e mostrar o que vale, mas dificilmente o Parlamento lhe dará uma Via Verde. A oposição estará mais interessada em travar-lhe a marcha. Todos querem o poder. Todos querem governar sob o dilúvio de fundos europeus e inaugurar obra. Os desafios do país recomendam um entendimento, mas é improvável que perdure. De toda a maneira, antes novas eleições que uma governação e um Parlamento encalhados durante um ano ou mais.

É difícil prever o que acontecerá em eleições antecipadas. Os portugueses tendem a penalizar quem derruba governos, mas nada garante que isso aconteça, por exemplo, com o Chega. O partido de André Ventura contribuiu para a queda antecipada do Executivo Regional dos Açores e quase duplicou os votos. Nas legislativas mais do que triplicou. O que não augura grande longevidade ao Governo de José Manuel Bolieiro.

O bloco da direita está em transformação. O PSD não perdeu, mas a forma como ganhou não afasta os receios existenciais em relação ao futuro do partido.

André Ventura quebrou o dique do bipartidarismo. Transposta essa barreira, pode continuar a alimentar-se da incapacidade do PS e PSD para resolver os problemas do país, mesmo que o que tenha para oferecer sejam medidas muitas delas fantasiosas e um quadro de gente sem experiência política e currículo reconhecido.

O Chega vai ter mais dinheiro (o resultado nas legislativas vale 3,7 milhões por ano) e capacidade de intervenção política. Com um quinto dos deputados, passa a poder impor a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito por sessão legislativa. Conquista também mais direitos potestativos, como o agendamento de debates de urgência ou a fixação da ordem do dia das sessões plenárias. Poderá ainda requerer a fiscalização da constitucionalidade de leis (basta um décimo dos deputados). A estreia em junho nas eleições europeias servirá como mais um momento de afirmação.

O cenário de Portugal vir a ter um Governo do Chega deixou de ser uma hipótese meramente académica. O mesmo se pode dizer sobre o mal-afamado Bloco Central.

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