As estatísticas revelam um colapso no número de crianças nascidas, e os indicadores coincidem nos Estados Unidos, em Itália e na Grã-Bretanha.

Fala-se sobre tudo em Portugal e fala-se sobre nada a propósito de tudo com a descontracção das pessoas adiadas e dos filmes antigos. Agora toda a gente vê epidemias no final da rua e antecipa vírus no final do Mundo. A palavra pandemia explica tudo o que se desconhece, o que se ignora, o que se vê ou o que simplesmente se odeia. É a preguiça mental a funcionar em modo automático.

Parece então que existe entre nós a proliferação das seguintes pandemias: da precariedade, do medo, do sedentarismo, das desigualdades, das estatísticas, da solidão, da desinformação, dos ecrãs, do desânimo, da saúde mental, das alterações climáticas, do populismo, do envelhecimento da população. A psicose da pandemia é a visão das coisas onde tudo representa uma fractura com a normalidade e na qual o Mundo é o território da desolação dos nossos sonhos. Como se a realização de uma pessoa fosse um café numa esplanada à beira-mar. Ninguém reconhece os prazeres do recolhimento em tons e sons Vídeo-Maria.

Na sequência da coerência do Mundo que me rodeia, talvez seja importante referir a pandemia da abstinência sexual. Referem as estatísticas um colapso no número de crianças nascidas, sendo que os indicadores coincidem nos Estados Unidos, em Itália e na Grã-Bretanha. Neste sentido, não estamos perante uma idiossincrasia de um país particular, mas sim face a uma verdadeira tendência global, uma espécie de novo puritanismo mundial em que a geração presente recusa os prazeres do corpo e as alegrias da procriação. Se este comportamento não representa uma fobia pandémica, desconheço então os segredos das fobias e as receitas das pandemias. Seria importante que os portugueses conhecessem as estatísticas nacionais, diria muito sobre o País e a perspectiva do Inverno Demográfico que subitamente se evaporou do discurso público, político, cultural, social.

É conhecido o efeito das pandemias na equação demográfica. O caso de Siena em Itália e dos recorrentes surtos de Peste Negra onde, de acordo com fontes históricas fidedignas, a população da cidade aumentou em duas pessoas desde o apex medieval até meados do século XX. Um caso certamente extremo, mas que provoca alguma reflexão sobre o efeito pós-pandémico na memória de uma população.

Deve ser reconhecido que o covid tem sido especialmente agressivo para com os cidadãos seniores ao mesmo tempo que parece estar desinteressado dos pequenos cidadãos juniores. No entanto, tal não significa que o efeito demográfico seja um jogo de soma nula ou uma aplicação cruel da lógica da sobrevivência dos mais fortes. O que deve ser afirmado e sublinhado é que por decorrência directa da pandemia alguns milhares ou milhões de novas criaturas não chegam a respirar o oxigénio deste Mundo. Este é sem dúvida um indicador que reflecte o pessimismo das sociedades acossadas pela pandemia, um indicador que reflecte a prevalência do medo sobre o princípio do prazer, um indicador que reflecte uma regressão na tendência natural para perpetuar a herança genética. Quando uma espécie abandona o impulso para preservar o património genético, tal significa a decadência, e no limite, a extinção.

Mas se observarmos com atenção, esta redução da natalidade não é um fenómeno novo nem uma novidade pandémica, mas tão-somente um aumento radical de um comportamento comum apenas agravado, intensificado, exponenciado pela sacrossanta pandemia. Do mesmo modo que as compras online crescem ao ritmo de um vídeo game, da mesma forma que o teletrabalho se intensifica, do mesmo modo que a interacção social decresce profundamente, da mesma forma que a recessão no capital social atinge números inéditos nas estatísticas globais. Cada homem é uma ilha no paraíso de Robinson Crusoé. Só nos falta a aventura de um companheiro chamado Sexta-feira.

Convirá referir que de acordo com a experiência histórica, na sequência de uma catástrofe, de uma guerra, de uma pandemia, é comum verificar-se o clássico fenómeno do “baby boom”, no fundo a reposição do stock demográfico necessário ao funcionamento normal de uma sociedade industriosa – recuperação económica, produtividade, índices de emprego, níveis de salários, manutenção do estado-social, pagamento de pensões e outras prestações sociais baseado no princípio da solidariedade entre gerações.

Há muito que se constata que as crianças são interrupções na vida dos adultos. A pandemia não justifica tudo nem inventa nada. As singularidades da infância, o ruidoso cortejo dos seus movimentos estão reservados para as creches e jardins-de-infância. Veja-se o clamor e a pressão para reabrir as escolas. O amor filial cruza-se com a liberdade individual e choca com o utilitarismo económico. A ideia da criança é uma invenção da sensibilidade romântica e uma desinvenção da sensibilidade pós-moderna.

Esta pandemia trata as crianças como seres inexistentes, hospedeiros inviáveis, matéria biológica a evitar. Tal como os humanos, reduzidos ao recolhimento, alinhados em filas de supermercados como babushkas soviéticas, evitam os impulsos eróticos como quem evita uma pulsão viral. E depois, pela noite, há sempre o streaming da Netflix.

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