
Trabalhadores de segunda? O problema dos contratos a termo na Administração Pública
O Estado não pode ser simultaneamente legislador, empregador e infrator. O tempo de corrigir esta contradição não é amanhã — é já.
Portugal é um país que, em matéria de trabalho público, gosta de vestir o fato da estabilidade… mas usa sapatos de papel. O vínculo de nomeação é apresentado como o bastião da imparcialidade e da dedicação exclusiva, mas a realidade quotidiana está cada vez mais marcada por uma figura difusa, ambígua e, por vezes, convenientemente esquecida: os contratados a termo certo.
Nos corredores da Administração Pública, há dois tipos de trabalhadores: os “efetivos”, de carreira, que navegam a máquina do Estado com segurança jurídica, e os outros — os que vivem com prazo de validade. São enfermeiros que não sabem se ainda têm emprego no Natal, técnicos que preparam dossiers de fundos europeus, mas que não têm garantido o mês de abril, educadores que planeiam projetos que podem nunca ver a luz do dia. Trabalham ao lado dos colegas permanentes, mas sob um sol diferente: o da precariedade institucionalizada.
A Constituição da República Portuguesa fala em igualdade e segurança no emprego. O Código do Trabalho reconhece que o contrato a termo é a exceção, e que o vínculo deve refletir a verdadeira necessidade duradoura da entidade empregadora. Mas a realidade é mais próxima de uma peça de teatro mal encenada: a Administração recruta com data de fim à vista… para funções que não desaparecem.
Durante a “geringonça”, o PREVPAP tentou corrigir este desvio, reduzindo substancialmente a precariedade no Estado. Mas o impulso reformista esbateu-se. Nos últimos anos, os contratos a termo voltaram a crescer. Impunha-se, talvez, uma nova edição desse processo de regularização extraordinária — com coragem, método e critério
Com efeito, o direito do trabalho público tropeça no seu próprio discurso. A pretexto da “contenção orçamental”, do “controlo do mapa de pessoal” e das “necessidades temporárias de serviço”, assiste-se a uma prática que se aproxima perigosamente daquilo que, no setor privado, chamaríamos fraude à lei. E a pergunta impõe-se: por que razão o Estado, que deve ser o garante dos direitos laborais, continua a apostar na precariedade?
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já avisou: os Estados não estão acima da obrigação de justificar, com verdade e rigor, a necessidade de contratos a termo. O TJUE não aprecia ficções jurídicas. E tem sido claro — quando o Estado recorre sistematicamente a vínculos precários para funções permanentes, entra no terreno da violação do Direito da União.
Sim, há funções temporárias. Mas aquilo que se vê, todos os dias, de escolas a hospitais, de câmaras a institutos públicos, são dependências estruturais de trabalho precário. O Estado passa recibos com data de vencimento, mas exige dedicação plena, zelo e sentido de missão. Quer um exército disciplinado, mas sem patente.
O problema é que uma Administração que se alimenta de vínculos frágeis é uma Administração frágil. E um Estado que normaliza o contrato a termo como forma de gestão de recursos humanos é um Estado que já não acredita em si próprio.
A questão não é apenas política. É jurídica. É também moral. Porque os trabalhadores que mantêm escolas abertas, hospitais a funcionar e serviços públicos acessíveis não podem continuar a ser peças descartáveis num jogo de calendário. O Estado tem de dar o exemplo. Ou arrisca-se a perder, definitivamente, o direito de exigir lealdade a prazo.
O Estado não pode ser simultaneamente legislador, empregador e infrator.
Quando se banaliza o contrato a termo para funções permanentes, não é apenas o vínculo que é precário — é a própria legitimidade do Estado Social que começa a estalar.
Porque um Estado que exige confiança, mas oferece insegurança; que prega estabilidade, mas pratica rotatividade — não inspira, fragiliza.
E se continuarmos a aceitar que há trabalhadores de primeira e trabalhadores de segunda dentro da própria casa da República, então a Constituição será cada vez mais uma moldura sem retrato.
O tempo de corrigir esta contradição não é amanhã — é já. Porque nenhuma democracia se aguenta eternamente sobre contratos que expiram antes da esperança.
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