Um ex-banqueiro central e a política monetária

Com caminhos mais ou menos tortuosos, uma coisa é praticamente certa: as taxas de juro reais (ajustadas pela inflação) vão permanecer negativas durante ainda muito tempo.

Há livros que devem ser lidos, não porque sejam especialmente brilhantes, mas porque são escritos por autores influentes. É o caso da mais recente obra do ex-presidente da Reserva Federal norte-americana Ben S. Bernanke, intitulado “21st Century Monetary Policy”. Trata-se de um relato que percorre o legado de diferentes presidentes da Reserva Federal, começando no mandato de William McChesney Martin – que ainda hoje é o presidente da Reserva Federal que permaneceu mais tempo no cargo (entre 1951-1970, 18 anos e 364 dias; mais 191 dias que Greenspan) – passando depois pelos mandatos de Arthur Burns (1970-1978), William Miller (1978-1979), Paul Volcker (1979-1987), Alan Greenspan (1987-2006), pelo próprio Bernanke (2006-2014), Janet Yellen (2014-2018), terminando com o incumbente Jerome Powell (2018-…).

O relato de Bernanke é essencialmente laudatório. Não seria, de resto, de esperar outra coisa. As críticas mais contundentes encontram-se circunscritas a dois dos seus antecessores: Arthur Burns e William Miller. No caso de Burns, porque não soube resistir às investidas de Nixon e porque, depois, perdeu o controlo da inflação. (Curiosamente, Bernanke não é crítico de Powell, que também perdeu o controlo da inflação, mas já lá vou.) No caso de Miller, porque se revelou inadequado ao cargo, tendo sido rapidamente substituído por Volcker. Relativamente a Greenspan, há uma ambivalência curiosa na avaliação do autor. Por um lado, são notórias as diferenças de estilo e de abordagem metodológica entre ambos – há uma espécie de rivalidade. Por outro, o balanço feito sobre a governação de Greenspan é indiscutivelmente positivo.

Bernanke passa em revista o seu próprio legado. Não haveria como não o fazer. Por exemplo, salta à vista a defesa dos instrumentos não convencionais de política monetária, designadamente a aquisição de activos financeiros durante o seu período de presidência. Há, no entanto, uma preocupação quase doentia em assegurar que a expansão do balanço da Reserva Federal não representou impressão monetária. Mas (não) terá sido mesmo assim? O autor também descreve as alterações que promoveu na comunicação institucional da Reserva Federal, em particular os comunicados que passaram a acompanhar as decisões de política monetária e que antes não existiam. Os momentos mais críticos da Grande Recessão de 2008/09 também são analisados, incluindo a queda do Lehman Brothers. Aqui, nota-se muita prudência na redacção. Noutras passagens vêem-se manifestações de humildade, como por exemplo na admissão feita pelo próprio de que não foi capaz de antecipar a crise do “subprime”.

O autor detém-se pormenorizadamente numa relação errática entre a taxa de desemprego e a taxa de inflação. Trata-se de uma discussão relevante. Segundo Bernanke, nas últimas décadas, a chamada curva de Phillips (que relaciona os dois conceitos anteriores) e que é frequentemente utilizada para definição do nível das taxas de juro, tem-se mostrado pouco fiável. Foi o que aconteceu, por exemplo, na última década até 2021, em que taxas de desemprego baixas conviveram com taxas de inflação igualmente baixas. A utilização cega da curva de Phillips pelos decisores de política monetária teria levado à subida prematura das taxas de juro, alega Bernanke. A globalização da economia e as novas tipificações das relações de trabalho são apontadas como perturbadoras da tradicional curva de Phillips. Destaca-se, neste domínio, a necessidade de acompanhar a taxa de desemprego de dados mais granulares do mercado laboral tais como, acrescento eu, estatísticas sobre a subutilização do trabalho.

A última secção da obra é dedicada às alternativas de política monetária, em particular quando as medidas tradicionais se revelam insuficientes. Aqui a obra parece datada. Não obstante ter sido publicada em 2022, o ressurgimento da inflação não lhe merece especial relevo. De igual modo, também não há especial referência à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Fica a ideia de que à data da escrita Bernanke estava na equipa da “inflação temporária”. Talvez por isso não seja crítico de Powell; bem pelo contrário. Para Bernanke, a redução estrutural da taxa de inflação ocorrida nos últimos 40 anos (anteriores ao momento presente), levou à redução das taxas de juro ao ponto de ameaçar a eficácia da política monetária. O que fazer então quando as taxas de juro se aproximam de zero? O autor avança ideias. Mas a estratégia de “yield curve control”, já em prática no Japão, e que passa por influenciar toda a curva de rendimentos (e não apenas as taxas de juro de longo prazo) parece merecer-lhe alguma simpatia.

Lido o livro, ficam algumas pistas para o futuro.

Primeiro, a política monetária é hoje muito menos antecipatória do que outrora, ainda que beneficiando de informação em tempo útil que antes não existia. Ou seja, onde antes existiam alterações das taxas de juro em antecipação de riscos tidos como prováveis e iminentes, hoje as decisões são tomadas depois de consumados os factos com base em informação que é mais rapidamente obtida.

Segundo, a adopção de referenciais de inflação flexíveis (conforme adoptados pela Reserva Federal e também pelo BCE) não levará à passagem de um extremo ao outro, a fim de recuperar curvas perdidas.

Terceiro, depois de tantos anos de baixa inflação os banqueiros centrais poderão sentir-se tentados a deixar correr a inflação, para paradoxalmente dotarem a política monetária de maior eficácia através de taxas de juro mais altas a prazo (que permitiriam maior margem de redução em caso de recessão).

Com caminhos mais ou menos tortuosos, uma coisa é praticamente certa: as taxas de juro reais (ajustadas pela inflação) vão permanecer negativas durante ainda muito tempo.

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