Uma educação para a cidadania obrigatoriamente transversal

Concebo a Educação para a Cidadania e Desenvolvimento não como uma disciplina autónoma, mas como uma prática. Vejo-a com um carácter transversal, mas sem impor uma conclusão.

Quando vou com uma pessoa que agradece ao condutor que parou na passadeira para nos deixar atravessar, pergunto-lhe o porquê daquele gesto de reconhecimento. E, mesmo antes de haver uma resposta, junto mais uma interrogação: “Também agradeces quando vais a conduzir e o outro carro pára no stop?”.

São questões que costumam apanhar as pessoas desprevenidas e sobre as quais nunca pensaram. Fazem-no sem dar por isso: põem-se em frente a uma passadeira, esperam que o carro trave e erguem a mão em sinal de agradecimento. Agradecem que aquele condutor tenha cumprido o que o Código da Estrada determina. Mas não o fazem quando é no sinal de stop. Porque ambos de carro, estão em pé de igualdade, não há a fragilidade do peão perante o automóvel.

Se questionarmos estas pessoas sobre se acham que o cumprimento da lei é coisa para se louvar, provavelmente dirão que não, que respeitá-la é aquilo que se exige e que a sua violação é que deve ser censurada. E também responderão que não à pergunta sobre se a sociedade se deve reger pela lei do mais forte. Contudo, estas pessoas agradecem na passadeira, mas não no sinal stop, o que tem subjacente as duas ideias que conscientemente elas rejeitam.

Lembro-me muito disto quando se fala de racismo, de machismo, de homofobia e de outros preconceitos que tais. Principalmente, quando lhe juntam o adjectivo estrutural, porque, para mim, aquilo que está no subconsciente é bem estrutural.

O tema está cheio de zonas cinzentas, como bem observou Luís Aguiar-Conraria num artigo cujo título perguntava “O que fazer quando um pai não deixa os filhos frequentar as aulas de Cidadania?”. Mas, em vez de aproveitarmos o caso concreto para um debate aprofundado sobre o papel da Escola, sobre as práticas pedagógicas, sobre a qualificação do corpo docente, preferimos transformar o assunto na habitual disputa de claques. Um mau serviço à cidadania.

No meu último artigo, falei dos e-mails que frequentemente envio a pedir a correcção de alguma coisa. Em Abril, dois dos felizes contemplados foram a Direcção-Geral de Educação e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, ambas por causa de uma aula da telescola. O tema era a globalização e, procurando dar exemplos ilustrativos do impacto da mesma no nosso dia-a-dia, a professora sugeriu aos alunos que lhes bastava olharem para o fogão das suas mães. A disciplina era Geografia e Cidadania, para o 9.º ano. O fogão era da mãe, pois claro, como o berbequim seria provavelmente do pai, que, quando estamos a falar de globalização, podemos reforçar estereótipos de género e mandar as mães para a cozinha. Cá temos a mão que agradece na passadeira.

Ora, a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento tem sido alvo de intenso debate – melhor, polémica – por estes dias. A discussão foi despoletada pelos pais de Rafael e de Tiago, dois alunos do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, em Vila Nova de Famalicão, que evocaram o direito de objecção de consciência e não permitiram aos filhos frequentar aquelas aulas. Os miúdos chumbaram por faltas, os pais colocaram uma providência cautelar e uma outra acção judicial para que lhes seja reconhecido o direito de rejeitar aquela disciplina, um conjunto de personalidades assinou o “Manifesto em defesa das liberdades de educação”, um outro conjunto de cidadãos lançou uma petição com o nome “Cidadania e desenvolvimento: a cidadania não é uma opção”.

O tema está cheio de zonas cinzentas, como bem observou Luís Aguiar-Conraria num artigo cujo título perguntava “O que fazer quando um pai não deixa os filhos frequentar as aulas de Cidadania?”. Mas, em vez de aproveitarmos o caso concreto para um debate aprofundado sobre o papel da Escola, sobre as práticas pedagógicas, sobre a qualificação do corpo docente, preferimos transformar o assunto na habitual disputa de claques. Um mau serviço à cidadania.

Comecemos por constatar o (que deve ser) óbvio: os filhos não são propriedade dos pais. São seres humanos a quem se reconhecem direitos. Esta constatação não nega que os pais tenham o papel fundamental na educação dos seus filhos. Têm esse direito e, sobretudo, essa obrigação. Contudo, esse direito não é absoluto e não está isento de limitações. Não aceitamos que os pais usem o espancamento como estratégia pedagógica, por exemplo. E não permitimos que os pais recusem a ida dos filhos à escola: tiramos-lhes essa liberdade em nome da liberdade dos filhos, porque a ignorância não é compatível com escolhas livres. Haverá pessoas (não muitas, digo eu) para quem o problema começa logo aqui, porque são contra a escolaridade obrigatória.

Avancemos para mais uma observação do que é evidente: educar implica sempre alguma forma de condicionamento. Sempre. Ainda que queiramos criar os filhos de modo a minimizar a interferência na sua natureza, as suas escolhas vão ser sempre o resultado das influências que receberem. Mesmo os “bons selvagens” Mogli e Tarzan foram condicionados; no caso deles, por animais, que lhes incutiram conhecimentos, habilidades, hábitos, reacções, etc.

Mas também não se iludam os progenitores que ambicionam ser apenas sua escolha as influências que os filhos recebem: as crianças estão em modo permanente de absorção. Eu tenho uma certa ternura por aqueles pais que julgam que os filhos são moldados exclusivamente por eles. É uma referência habitual nas conversas sobre sexismo, onde explicam que educaram filhos e filhas de igual maneira, mas que os rapazes preferem naturalmente o futebol e as raparigas o ballet. É um pensamento cândido, que ignora (ou tenta ignorar) que os descendentes são também o produto do que vêem na televisão, do que observam na rua, das conversas que escutam no parque e também dos actos dos pais quando não se apercebem que estão a transmitir-lhes valores, como se a educação fosse uma coisa que se pudesse ligar e desligar.

Logicamente, aquilo que os miúdos são resulta também das suas vivências na escola. E aqui passamos às questões de fundo. Deve a Escola ser uma instituição onde os valores não desempenham um papel? Num artigo escrito na senda da polémica, António Barreto defende que “A melhor disciplina imaginável é um verdadeiro “Código da Estrada” da democracia, um guia para a Constituição e a Administração Pública. Sem juízos morais, sem regras de comportamento, sem valores éticos e sem imposição de valores”.

Eu não sei se António Barreto tem carta de condução, mas se há coisa de que o Código da Estrada está cheio é de regras de comportamento. E se a imposição de conduzir pela direita não é motivada por qualquer preferência ideológica, a obrigação de ceder passagem aos veículos em serviço de urgência resulta de um juízo colectivo, que é o de que as missões de prestação de socorro devem ter prioridade, mesmo que o semáforo esteja vermelho. Tal como o professor que impede os seus alunos de copiarem no teste está a fazer a apologia do valor da honestidade. As sociedades têm valores. São esses valores que as caracterizam. E, portanto, nem percebo como poderiam eles ficar arredados da Escola.

Não compreendo como poderia a Escola ser axiologicamente neutra, nem acho que seja desejável que o fosse. Imperativo é que a Escola não doutrine (o que não significa não ensinar doutrina; em Filosofia, por exemplo, é difícil escapar-lhe). Creio, contudo, que o casal de Famalicão e respectivos apoiantes não pretendem expurgar a Escola de concepções éticas.

Aliás, José Miguel Júdice, um dos subscritores do manifesto que defende a não imperatividade da disciplina, há pouco mais de dois anos, advogava a obrigatoriedade do serviço militar ou de um serviço cívico, justificando-a “pelo efeito de reforço de sentido cívico e de ligação aos valores pátrios” e “pela formação e disciplina que provoca numa fase essencial para definir o futuro deles”. Ideias que vamos também encontrar num outro signatário, Pedro Lomba, que, em 2011, pugnando pela instituição de um serviço comunitário obrigatório, entendia que “ao contrário do que apregoa a cultura dominante, não se constrói uma comunidade sem valores exteriores que não são descobertos ou interiorizados por cada indivíduo; muitas vezes precisam fatalmente de lhes ser impostos”.

Acho, pois, que podemos concluir que o problema não está, pelo menos para alguns dos detractores da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, no facto de serem inculcados valores. Até porque eles estão presentes no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, cuja homologação em 2017 se fez sem controvérsia (o que pode ser apenas fruto de desconhecimento).

A questão que se coloca é, então, a de saber se Educação para a Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina que programa a educação segundo directrizes filosóficas, políticas e ideológicas, como sucede com a de Educação Moral e Religiosa, o que obsta a que possa ser obrigatória. A minha resposta honesta é que não sei. Eu fui à página da disciplina no site da Direcção-Geral da Educação, segui uns quantos links que ela inclui, passei os olhos pelas áreas temáticas, mas confesso que não li as centenas de páginas de documentos estratégicos, de documentos de referência, de guiões (que não são manuais escolares), de folhetos, de orientações e de legislação.

Não sei se quem optou por um dos lados da barricada leu e está em condições de dizer o que é e o que não é a disciplina. Ou se tomou posição a partir daquilo que é a prática que conhece de uma ou outra escola. Por exemplo, no Facebook encontrei diversas publicações que faziam uma equivalência entre a Educação para a Cidadania e Desenvolvimento e o inquérito absurdo que há uns tempos foi distribuído a uma turma do 5º ano da Escola Francisco Torrinha, numa extrapolação indevida. Espero que a Escola ensine que não se fazem generalizações a partir de casos particulares.

E, se a aplicação de algumas escolas chocar com o artigo 43.º da Constituição, isso sucede porque esses estabelecimentos estão a distorcer aquilo que é suposto a disciplina ser? Ou o enquadramento dela, com extraordinária autonomia das escolas, permite-o? Ou estamos perante uma situação em que os docentes não foram devidamente preparados? No 8.º ano, tive uma discussão com a minha professora de História: eu dizia que o século XXI começava em 2001, ela insistia que era em 2000; para me convencer da sua razão, explicou-me que o ano zero não tinha existido, que é precisamente aquilo que justificava o que eu defendia. Deviam os meus pais ter objectado a que eu frequentasse História, porque a disciplina não era consentânea com a sua vontade de me educar com lógica? Eu diria que o problema não era da História do 8.º ano. Será que o mesmo se passa com a disciplina da polémica?

Concebo a Educação para a Cidadania e Desenvolvimento não como uma disciplina autónoma, mas como uma prática, começando o exemplo nas equipas docentes. Entendo-a como colocação de produto e não como intervalo publicitário, para usar uma analogia vinda do marketing.

São várias perguntas e eu não tenho as respostas. Mas sei que, se a Escola não pode afrontar a liberdade de aprender e ensinar, garantida pela Constituição, também tem de ser um lugar onde ninguém é “privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”, conforme estabelecido no artigo 13.º da Constituição, um lugar onde todos vêem salvaguardado os seus direitos ao desenvolvimento da personalidade, à identidade pessoal, à cidadania, à capacidade civil e são protegidos de qualquer forma de discriminação, como dita o artigo 26.º.

E também me parece que não adianta muito ter um professor quase uma hora a falar sobre sustentabilidade ambiental, se, finda a aula, ele vai para a porta da escola fumar o seu cigarro e atira a beata para o chão. Estou convencida de que ter cuidado para não reproduzir estereótipos de género nos exemplos que se escolhe dar faz mais pela cidadania que um tempo lectivo a debitar sobre igualdade de género. Acredito que atitudes, valores e comportamentos não são um conteúdo programático, até porque serve de pouco (ou mesmo de nada) ter uma aluna que responda correctamente a todas as questões sobre violência no namoro e depois se ache no direito de controlar com quem o namorado troca mensagens. Além de que as opiniões não se avaliam, que não as há certas e erradas, como, de resto, a própria disciplina reconhece.

Por isso, concebo a Educação para a Cidadania e Desenvolvimento não como uma disciplina autónoma, mas como uma prática, começando o exemplo nas equipas docentes. Entendo-a como colocação de produto e não como intervalo publicitário, para usar uma analogia vinda do marketing. Vejo-a com um carácter transversal, que, a partir do estudo de um poema em Português, do clima em Geografia, do corpo humano em Ciências Naturais, de uma revolução em História, das forças, movimentos e energias em Física, aborda os temas do ambiente, da segurança rodoviária, da saúde, da sexualidade, da igualdade de género, da multiculturalidade, dos direitos humanos, etc., explicando aquilo que é objectivo e dando espaço para o debate naquilo que é matéria de posicionamento, corrigindo o que são falácias argumentativas, mas sem impor uma conclusão. A única imposição deve ser a do respeito.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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