Vacinas e patentes: não há contradição

A descoberta das vacinas para a Covid-19 em menos de um ano foi um marco na história da Ciência. O problema que se coloca não está a montante, na criação, mas a jusante, na produção e distribuição.

A onda de entusiasmo do final do ano passado, em resultado da descoberta da vacina contra a COVID-19, esbarrou na frustração com a lentidão na entrega das vacinas. Há várias razões que estão na origem do atraso e a Comissão Europeia, desde logo pela voz da sua Presidente, assumiu a responsabilidade no processo.

Não tardou quem viesse diabolizar as empresas e exigir a quebra das patentes (o termo técnico é “licença compulsória”) como a receita mágica para acelerar o processo de produção das vacinas. E é fácil dizer que, para resolvermos o problema de produção de vacinas, a solução passa por quebrar as patentes – ou dito de outra forma, desrespeitar os direitos de propriedade intelectual de quem inventa, pesquisa e cria – e passar a produzir tudo (e.g. medicamentos, vacinas, equipamento médico) em laboratórios ou empresas públicas.[SV1] No entanto, este argumento ignora o funcionamento da criação de propriedade intelectual. Pois vejamos:

A narrativa que defende a quebra de patentes assenta na lógica de que só assim será possível aumentar a produção de vacinas. Todavia, a premissa dificilmente se verificaria porque o problema na origem das poucas vacinas disponibilizadas até agora prende-se, acima de tudo, com a falta de capacidade produtiva e não com a falta vontade das empresas responsáveis pelo desenvolvimento das vacinas em licenciar a produção.

A verdade é que uma licença compulsória agravaria o quadro de défice de vacinas, tendo em conta que o incentivo económico em aumentar a capacidade produtiva seria nulo e haveria menos agentes económicos interessados em investir no aumento dessa capacidade. Além disso, um cenário de quebras de patente teria consequências graves no longo-prazo, nomeadamente no progresso da investigação científica, considerando que a proteção das patentes estaria associada a circunstâncias políticas, gerando incerteza.

Porque existem patentes?

Os direitos de propriedade intelectual, em particular as patentes, são a melhor forma de proteger uma invenção: asseguram aos inventores (ou cientistas, criadores) um período de exclusividade para produzirem e comercializarem os seus produtos. Por exemplo, no caso da indústria farmacêutica, o desenvolvimento de um medicamento é longo (tipicamente mais de uma década), arriscado e exige um volume elevado de financiamento. A questão do risco está relacionada com fatores como a duração do período de investigação – quantos cientistas têm projetos de investigação que demoram décadas a darapresentar os primeiros resultados –, o sucesso ou eficácia do tratamento, ensaios clínicos. Ou seja, os investidores, quem decide correr o risco de financiar estes projetos, temtêm uma expetativa de retorno.

A proteção da propriedade intelectual (patentes) desencadeia, pois, um duplo incentivo: a quem cria ou investiga e ao financiamento desses processos. Por estas razões é que se não houvesse patentes, provavelmente não teríamos tido tantas vacinas contra a COVID-19 em tão pouco tempo. Acrescente-se que as patentes, como forma de proteção dos direitos de quem cria (da sua propriedade intelectual), são instrumentos que garantem uma remuneração dos cientistas e investigadores e um dos principais incentivos ao seu trabalho de longo prazo. Espanta, por isso, que este discurso da quebra das patentes surja sobretudo em áreas políticas que advogam autoridade moral no discurso sobre direitos dos trabalhadores e remuneração de investigadores.

Patentes e financiamento público

O sucesso no desenvolvimento da vacina contra a COVID-19 em tempo recorde deveu-se, em grande medida, à mobilização de recursos públicos e privados. É inegável que, sem financiamento público, talvez não tivesse sido possível descobrir a vacina em menos de 12 meses. A contribuição pública ajudou, pois, a reduzir o risco, mas a investigação e desenvolvimento foi conduzida por cientistas do setor privado ou em parcerias público-privadas. Imaginemos, por um segundo, que o Estado passava a ocupar na íntegra o espaço do setor privado em I&D, comercialização, distribuição de medicamentos/vacinas. Teria capacidade para se substituir às empresas farmacêuticas? Estaria disposto a correr o mesmo nível de riscos? Teria a mesma capacidade de gestão e atração de quadros qualificados? Não de somenos importância seriam ainda os efeitos adversos de contaminação e influência política do Estado na produção e desenvolvimento de medicamentos ou vacinas e o seu impacto negativo no progresso da ciência.

O grande problema que hoje enfrentamos com a falta de vacinas em nada tem que ver com as patentes, mas sim com infraestrutura insuficiente para aumentarmos a produção. Mais, a indústria farmacêutica é dos setores mais regulados da economia. A abertura de uma fábrica de vacinas, ao contrário do que possam pensar pessoas não tão bem informadas, está sujeita a um rigoroso e complexo processo de certificação (e.g. verificação de processos, garantia de qualidade, etc.) requerendo, por isso, o envolvimento de muitas entidades, tornando o mesmo também moroso.

A propriedade intelectual é um direito fundamental dos cidadãos e isso bastaria para o entendermos como um valor absoluto em si mesmo, mas tem um alcance maior, também no plano económico. É a proteção da propriedade intelectual, dos direitos dos inventores, que incentiva o investimento público e privado em investigação científica e promove a inovação, gerando riqueza e emprego. E são também as regras em matéria de propriedade intelectual que protegem os criadores e a sua remuneração pelo esforço (por vezes de toda uma vida) para alcançar um ativo, tantas vezes intangível. Olhe-se para os músicos com uma canção pirateada, para os pintores com um quadro copiado ou para os programadores com software pirateado. No caso dos cientistas, sobretudo os que investigam na área da saúde, há um claro interesse público reforçado, mas isso não pode significar a diminuição dos seus direitos (que são fundamentais), nem a desconsideração de um sistema que, na verdade, não só os protege, como fundamentalmente incentiva o investimento.

A descoberta das vacinas para a Covid-19 em menos de um ano foi um marco na história da Ciência e da Medicina. O problema que se coloca não está a montante, na sua criação, mas a jusante, na sua produção e distribuição. Se a montante, cumpre aos Estados proteger a propriedade intelectual, a jusante cumpre garantir que todos os cidadãos têm acesso a vacinas. É no esforço de defender a saúde dos nossos cidadãos que devemos estar empenhados e isso implica uma cooperação estreita (mas com firmeza e exigência) com as farmacêuticas. O caminho não deverá ser o do confronto, porque o verdadeiro combate não é contra esta ou aquela empresa, mas contra um vírus que já todos conhecemos.

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