Vacinas sim, vacinas nim

Estar no centro das notícias por causa dos novos contágios ou de fatalidades não tem apenas o lado humano e de saúde devastador. Tem também consequências reputacionais.

A frieza do paralelo numérico — sempre os números comparados; sempre os mesmos critérios de comparação –, é assustadora e revela o descaminho de Portugal na 3ª vaga invernal, já pressentida na 2º, durante o outono. A mera comparação com os outros países da União Europeia prova que o descontrolo não era inevitável. As estirpes chegaram a todo o lado, mas nem todos se protegeram da mesma maneira. Estar no centro das notícias internacionais por causa do ratio de novos contágios ou de fatalidades (por 100 mil e por milhão de habitantes, respectivamente), não tem apenas o lado humano e de saúde pública devastador. Tem também uma consequência reputacional para Portugal que, se não for rapidamente interceptada, causará mais danos económicos e sociais num país acolhedor e turístico. Para mais no ano em que, a partir do segundo semestre, provavelmente, a confiança recomeçará a fazer-se sentir.

Prefiro hoje olhar para o que nos pode trazer uma esperança realista, cujo planeamento tem de ser baseado em comunicação objectiva, transparente e prudente (para evitar que o desespero e a ilusão se juntem e criem grandes confusões). Refiro-me ao extraordinário progresso no mundo das vacinas contra a Covid e ao calendário que plausivelmente permitirá democratizar o efeito vacina, no mundo, na Europa e, claro, em Portugal. Um caso extraordinário sim, onde uma cooperação científica e industrial sem precedentes conseguiu colocar no mercado vacinas que, em condições normais, demorariam cerca de dez anos (ou mais) a investigar, ensaiar, testar, regular e aprovar. Mas por isso mesmo, também um caso único de boas e más notícias em tempo real, com falhas, insucessos e problemas, em paralelo com os conseguimentos e as proezas. Tudo em tempo real, tudo ao mesmo tempo, o que obviamente constitui um desafio enorme para empresas, reguladores e sociedades.

Se olharmos para o roteiro da vacinação no mundo e na Europa, podemos extrair, neste momento, três conclusões. Duas francamente positivas e uma menos boa.

A primeira, digna de admiração, é para o programa israelita. Na verdade, Israel conseguiu o feito extraordinário de ter já inoculado mais de 50% da população com pelo menos uma dose e, pese embora o número de contágios não ter diminuído ainda para níveis desejáveis, o número de internamentos desceu já consideravelmente, o que, em termos de pressão sobre o sistema de saúde, é muitíssimo relevante. A par de Israel, destacam-se os Emirados Árabes Unidos, com expressivos 30% de população vacinada (com uma dose, pelo menos). Acima dos dois dígitos estão ainda o Reino Unido e os Estados Unidos da América com mais de 12% e 8%, respectivamente.

Como procurei explicar recentemente, o sucesso de Israel e dos Emirados Árabes Unidos não acontece por acaso. Os dois países (ambos com 9 milhões de habitantes ) especializaram-se em ser competitivos neste processo de vacinação: ofereceram serviços para conquistar precedências. Israel ofereceu à OMS e à Pfizer ‘data’ em tempo real de milhões de vacinados (anonimizados), os Emirados ofereceram à Sinopharm (uma das grandes multinacionais farmacêuticas) dezenas de milhar de voluntários para os ensaios clínicos. Ambos têm a Saúde completamente digitalizada. Ambos assinaram os respectivos contratos – com risco certamente – muito cedo. Acresce que sob um comando central férreo, os dois colocaram os sectores público e privado a competir pela eficiência na vacinação, Israel com lista de prioridades, os EAU abertamente (mas médicos e enfermeiros foram vacinados em setembro). Nesta pandemia, agir rapidamente salva vidas e agir com inovação alcança melhores resultados.

Olhando para o ranking da vacinação também se retira que a Europa, numa primeira experiência com escala na área da saúde, está atrasada face ao mundo anglo-saxónico. No sábado, a média de doses inoculadas na UE era de 2,7 por 100 habitantes, longe do Reino Unido e dos EUA (mesmo descontando o facto de os ingleses terem espaçado para 84 dias a diferença entre a toma da primeira dose e a toma da segunda).

A posição de Portugal num quadro europeu exíguo é, de momento, positiva (3,2 face à média de 2,7). Melhores do que nós estão países como Malta, Dinamarca, Irlanda, Espanha, Roménia ou Lituânia. Mas com rácio pior, ou ligeiramente pior, encontram-se nações relevantes como a França, Itália, a Alemanha ou a Suécia.

A nota menos boa vai para a Rússia, a China, a Índia e o Brasil, quatro gigantes – alguns deles produtores de vacinas – que, curiosamente, apresentam taxas de execução relativamente baixas (menos de 2%). É evidente que isso também se deve à sua dimensão demográfica. Mas parece confirmar que esta pandemia, sendo global, é assimétrica, também nos tempos de vacinação.

Percebe-se agora que foi feita uma proposta, nesse sentido, no seio da task force portuguesa para a vacinação. A decisão tomada – manter, em princípio, os 21 dias – é a que corresponde à chamada “jurisprudência das cautelas”. Não faltam avisos científicos que consideram a decisão inglesa, que permite dar a segunda dose até 84 dias depois da primeira, como temerária. Permite bons números no ranking da vacinação, mas não está validada pelo fabricante.

Paulo Portas

Um outro tema que conheceu evolução, em Portugal, foi o da posição das nossas autoridades sobre a questão do tempo que deve mediar entre a administração da 1ª e da 2ª dose. A hipótese do alargamento nasce de uma compreensível pressão, e até desespero, dos Governos para conseguirem “alimentar” o discurso de uma vacinação rápida, em face das reduções de produção que têm de enfrentar. A linha de fronteira entre vontade política e consistência científica é aqui muito fina.

Recorde-se que a questão reside numa dilação contratual nas entregas por parte da Pfizer. Ora, quer a Pfizer quer o regulador americano (FDA), afirmam ou consideram não existir, ainda, evidência científica para atestar com segurança a extensão da segunda dose para lá do período de 21 dias. O regulador europeu optou por um ambíguo “nim”, e a OMS, sendo mais clara, admite excecionalmente uma segunda toma que vá até ao 42º dia.

Percebe-se agora que foi feita uma proposta, nesse sentido, no seio da task force portuguesa para a vacinação. A decisão tomada – manter, em princípio, os 21 dias – é a que corresponde à chamada “jurisprudência das cautelas”. Não faltam avisos científicos que consideram a decisão inglesa, que permite dar a segunda dose até 84 dias depois da primeira, como temerária. Permite bons números no ranking da vacinação, mas não está validada pelo fabricante.

As objeções de natureza científica a esta extensão “politica” da periodicidade das doses, merecem ponderação. Por um lado, os ensaios clínicos validados foram feitos com 21 dias entre as duas doses, e não com qualquer outro calendário; por outro, existirá ainda o perigo suplementar de permitir às variantes um tempo de adaptação mais flexível, o que reduziria a eficácia das vacinas nesse cenário. Tudo visto, a decisão da task force parece razoável, e só novos dados – oxalá possam surgir -, darão cariz científico a uma decisão que é, antes de tudo mais, científica.

O outro fator de perturbação está na vacina da AstraZeneca. Tem-se falado muito do problema contratual. Mas há outro, que constitui um dilema clínico e científico.

Do lado do braço de ferro contratual entre o Reino Unido e a União Europeia é bom salientar que, por um lado, Londres fechou o contrato antes de Bruxelas, mas é igualmente autêntico que o contrato não permite exonerar a fabricação em unidades do Reino Unido, do ponto de vista dos fornecimentos para o continente europeu. A Comissão fez uma ameaça de bloqueio às exportações que só funcionou parcialmente. Obviamente, levada às últimas circunstâncias, essa ameaça pode ter efeitos “boomerang”. Em termos factuais o fornecimento da AstraZeneca já não será de 100 milhões de doses no primeiro trimestre, mas também não será apenas de 31 milhões de doses (o acordo anunciado ontem aponta para 40 milhões de doses, o que ainda assim é um corte que não é de pouca monta).

O problema clínico e científico é, no mínimo, perturbador e, neste ponto, a AstraZeneca é inteiramente responsável pelos erros que cometeu. Se tivermos memória, a candidatura da AstraZeneca foi durante meses considerada líder. No entanto, quando a Pfizer e a Moderna – como uma tecnologia diferente – anunciaram efetividades superiores a 90%, a AstraZeneca parece ter cedido à tentação de revelar um número aparentemente semelhante, mas realmente diferente.

Na verdade, os ensaios clínicos de fase 3 desenvolvidos pela AstraZeneca tinham uma presença muito diminuta de voluntários idosos, e ainda menos dos 65 anos para cima. Isso só foi verificado e admitido depois de uma intensa discussão entre pares, nascida de uma outra controvérsia, em que os anglo-suecos parecem ter-se atirado para fora de pé, relativa a uma eficácia potencial desta vacina ao cabo de uma só dose.

O resultado daquilo que não poucos cientistas consideram ter sido uma precipitação foi a perda da liderança e a emergência de um problema regulatório. Os americanos exigiram um estudo suplementar só com voluntários idosos; já a Europa, aflita com a escassez de vacinas (em contradição com o discurso político), viu a EMA (Agência Europeia do Medicamento) dar uma aprovação genérica sem expressamente colocar um caveat etário. Como os reguladores nacionais têm competências nesta matéria, está criado um dilema que não é fácil de resolver.

Nos últimos dias, o regulador alemão desaconselhou expressamente a toma da AstraZeneca por pessoas com mais de 65 anos, o regulador italiano pediu “alternativas” à AstraZeneca nessa faixa etária e o regulador austríaco tomou hoje uma decisão tendencialmente negativa quanto a essa vacina nesse grupo etário, apenas essa e apenas nesse. Em Portugal o Infarmed terá de se pronunciar nos próximos dias. E essa opção constitui uma responsabilidade. Talvez o compromisso possível seja, se a gestão de stocks o consentir e lógica das duas doses o autorizar, direcionar a vacina da AstraZeneca essencialmente para grupos etários abaixo dos 65 anos, até que haja informação científica nova e consistente.

Estes problemas não são inultrapassáveis, mas causam constrangimentos. Se olharmos para o Plano de Vacinação português, chegamos à conclusão que, após as reduções da Pfizer e da AstraZeneca, teremos em fevereiro um contingente de doses à volta das 775 mil, face ao 1.2M que esperávamos ter. Isso obriga a ter especial cautela na comunicação e pedir um pouco de paciência às pessoas que aguardam a vacinação. É possível que em março melhore a capacidade produtiva.

Uma boa ajuda para o segundo trimestre vem de duas companhias americanas que acabam de divulgar os resultados dos ensaios clínicos de fase 3. É a última fase, que antecede a submissão do dossier da vacina aos reguladores.

Os resultados apresentados pela Johnson & Johnson (uma das maiores farmacêuticas do mundo) e pela Novavax são globalmente positivos.

A J&J fez o ensaio clínico de fase 3 com maior dimensão, comparando com todas as outras: 44 mil voluntários. Seguindo uma política de comunicação mais conservadora, começou por publicar um dado relativamente decepcionante, ou seja, uma efectividade de 66% em casos de Covid-19 moderado. Mas seguidamente confirmou uma efectividade de 85% em casos severos, precisamente o ponto mais critico e precioso para atenuar as pressões sobre as unidades de saúde e o risco de letalidade. O outro ponto forte da J&J é uma percentagem muito significativa de voluntários com mais de 65 anos.

Já a Novavax realizou o último ensaio com 15 mil com voluntários (comparativamente modesto), mas apresenta uma efectividade geral bastante alta, de 89%. Questão a meditar é o facto de uma parte dos voluntários ter estado em contacto com a variante sul-africana, cuja potência parece ter reduzido a efetividade da Novavax – nesse grupo – a 49%.

Estas são as matérias que os reguladores americano e europeu terão de avaliar. Tanto a J&J como a Novavax têm contratos de fornecimento com a União Europeia com bastante significado. Donde, parece razoável dizer que as perspectivas são difíceis durante o inverno, mas podem melhorar com a primavera. Convém ajustar o realismo da comunicação aos factos e não aos desejos.

O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

Nota: A opinião de Paulo Portas é publicada com base no comentário semanal no Jornal das Oito da TVI, ao domingo.

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