O Chega é outra coisa que ninguém sabe como contrariar na habitual placidez de uma democracia instalada e preguiçosa.

Ventura é a sombra que ilumina a crise da democracia. Ventura é a luz que ensombra o grande consenso democrático. Um tribuno por excelência, um demagogo por vocação, um agitador por devoção, a democracia portuguesa não sabe o que fazer com o fenómeno Chega. Não é o discurso do medo nem a diabolização do partido que o vai parar. Não é a utilização de uma suposta superioridade moral da democracia que será o antídoto para o Chega.

O Chega é outra coisa que ninguém sabe como contrariar na habitual placidez de uma democracia instalada e preguiçosa. Talvez porque no estádio actual da democracia portuguesa Ventura é a hipótese política que conhece finalmente a sua hora. A aventura do Chega é um fenómeno que já não pode ser contido por “cordões sanitários”. Quando 21% dos portugueses está na disposição de votar Ventura, o Chega é parte da paisagem política portuguesa. E não é um regresso ao passado, mas o futuro pós-democrático em registo pluralista limitado.

Em bom rigor, o Chega não é bem um partido, mas a projecção da personalidade política de Ventura em registo subversivo. O discurso pode ser inflamado, estridente, ofensivo, hiperbólico, xenófobo, racista, homofóbico, tudo com o intuito de chocar as consciências para controlo e transformação do regime democrático. O Chega recorre até a um “mínimo fascista”, mas na realidade não tem uma “ideologia-guia”, mas uma espécie de visão semi-real suportada pela semi-intuição de Ventura. O Portugal de Ventura é uma ficção política onde a verdade é uma “construção social” baseada no sentimento de um povo idealizado. Se o consenso é o princípio da inclusão, Ventura é “populista” na separação entre o povo idealizado e o “parasita observado” para no final impor politicamente o princípio da exclusão.

Neste ponto o Chega é uma novidade no leque vocal da democracia portuguesa. No tempo da igualdade radical, Ventura surge como o “líder nacional” num país divido entre o povo e as elites, dividido entre os esquecidos e os assistidos, dividido entre os portugueses e os migrantes, dividido entre os oprimidos e os opressores, dividido entre a segurança e a insegurança, dividido entre correctos e corruptos. O país de Abril é para o Chega a negação da identidade portuguesa, a desordem de um mundo às avessas, o regime em que o português é estrangeiro na sua terra. Portugal é um “caos democrático” e o Chega o partido providencial.

Típico da “mentalidade” da direita radical, pois o Chega não é propriamente a representação coerente de uma “ideologia clássica”, o partido reintroduz na democracia portuguesa o tema da “ordem”, a urgência da “identidade”, o sentimento de “pertença”. Em tempos de transição, os portugueses parecem recear a diluição da ordem na tolerância democrática em que o “viver habitualmente” é parte de uma dimensão social volátil e dispensável. Em tempos de incerteza, os portugueses parecem recear a erosão da identidade como uma ameaça ao “modo português de estar no mundo” como representação de uma realidade atrasada e condenada. Em tempos de transformação, os portugueses parecem procurar a segurança de um sentimento associado a uma comunidade de destino ao qual pertencem na normalidade do quotidiano e na projecção política institucional. A democracia esquece esta dimensão identitária e abre espaço político para o discurso exuberante e excessivo do Chega. A melancolia democrática é a câmara de eco do espectáculo populista.

Se o Chega é um movimento e uma mentalidade, o discurso político da normalidade democrática não consegue fazer frente ao arbítrio de um discurso político que não se rege pelo princípio do contraditório nem pela evidência da realidade. Não é possível comparar universos políticos oblíquos. O Chega distingue-se dos “partidos clássicos” em democracia porque não pretende jogar o jogo democrático numa configuração regular e regulada. O Chega instrumentaliza a “violência simbólica” e a “verdade alternativa” para criar o seu próprio registo político – o registo político que os portugueses parecem entender na simplicidade directa de um simplismo demagógico. Para Ventura a verdade é uma variação da mentira. O efeito de politização da realidade pelo Chega implica a despolitização democrática e o fim do debate político. Sobram as acusações, sobram as ameaças, prevalece o medo. É a lógica de uma guerra civil em tempos de crise democrática. A ideia de um Ventura 21 é a legenda da ingovernabilidade política.

A indefinição que a democracia portuguesa enfrenta na actualidade pode ser resumida numa simples questão: “Será possível utilizar a demagogia ao centro para combater a demagogia dos extremos?” Será possível um político agressivo, carismático, mas ortodoxo na mensagem política? Será a “moderação populista” uma alternativa liberal e democrática? Sejam impérios ou frases, é preciso saber se estamos no pior dos mundos em que as alternativas políticas são o fogo e o fogo.

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Ventura 21

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