Vive la France

"How the French Think" é um dos mais notáveis ensaios sobre a cultura francesa publicados nos últimos anos, para conhecer os franceses e as suas interrogações.

Um povo intelectual. Por ano, realizam-se em França três mil festivais culturais, a maioria deles no verão. As Jornadas do Património mobilizam anualmente 12 milhões de visitantes. O orçamento da Cultura é um dos maiores da Europa e França conta com uma rede de 3.500 livrarias “independentes”, cuja sobrevivência é largamente subsidiada pelo Estado. O Salão do Livro de Paris, o maior de França, teve 200.000 visitantes em 2013.

De acordo com alguns inquéritos, cerca de metade dos franceses lê livros diariamente e, ao contrário do que se poderia esperar, esse número sobe para 80% nos inquiridos entre os 15 e os 24 anos. É certo que os livros mais vendidos são traduções de grandes sucessos internacionais, de origem inglesa ou norte-americana – os best-sellers de 2013 foram Cinquenta Sombras de Gray, de E. L. James, e Inferno, de Dan Brown –, mas também é certo que as grandes casas editoriais francesas, como a Flammarion, a Gallimard, a Plon, a Grasset ou Fayard, estão bem, muito bem, e recomendam-se.

E, no entanto, França lamenta-se e chora. Nas televisões ou nas livrarias, centenas de diagnósticos pessimistas, tingidos a negro, sobre a “decadência” da vieille France, o seu irreversível declínio face à hegemonia cultural anglo-saxónica (que a Internet aprofundou) ou, num registo frequentemente xenófobo, devido à presença sufocante de uma gigantesca comunidade islâmica, nem sempre pacífica ou seguidora dos ideais revolucionários da liberdade, igualdade e fraternidade.

Terminada a leitura deste livro, não obtemos uma resposta definitiva a estas interrogações e perplexidades. Nem era esse, de resto, o propósito do autor, Sudhir Hazareesingh, nascido nas Ilhas Maurícias e actualmente professor no Balliol College, em Oxford. Este seu “How the French Think” é um dos mais notáveis ensaios sobre a cultura francesa publicados nos últimos anos, aliando uma erudição esmagadora a um estilo fluido e cativante, com pinceladas de humor finíssimo.

O espírito gaulês é aqui observado com um olhar penetrante, umas vezes deslumbrado com o esplendor pretérito da cultura francesa, outras vezes impiedoso para com as misérias dos intelectuais públicos arvorados em mestres de pensamento. Se o leitor preferir uma abordagem leve e humorística, mas completamente previsível e pejada de lugares-comuns, poderá deleitar-se com “A Year in the Merde” – Um Ano em França, de Stephen Clarke, o qual foi traduzido entre nós, bem como a sua sequela, Mais Um Ano em França.

“How the French Think” é um livro totalmente diferente, de natureza académica, solidamente escorado num conhecimento impressionante da história e da cultura francesas. Sudhir Hazareesingh começa por nos falar da sua formação francófila, nos tempos de infância e juventude passados num arquipélago do Índico, onde cresceu mergulhado em leituras de Molière, Racine e Gide, e, mais tarde, dos inevitáveis Sartre e Camus.

Depois, tomando como pretexto um discurso proferido nas Nações Unidas, em 2003, por Dominique de Villepin, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, o autor de “How the French Think” disseca o “espírito francês” com uma admirável argúcia. Desde logo, a verve retórica e a masculinidade sedutora que caracterizam a oratória pública gaulesa.

Depois, o apelo à razão e lógica, fazendo que os discursos e as representações sejam construídos em termos binários, através da oposição de pólos antagónicos (conflito vs. harmonia; tradição vs. revolução; interesses próprios vs. bem comum; moral vs. política).

Por outro lado, a noção de que o discurso se baseia numa sabedoria acumulada ao longo de séculos e tem uma validade universal, pois é aí que reside a “excepcionalidade francesa”. Finalmente, um optimismo confiante, por vezes arrogante, na superioridade cultural de França em face de outras nações, a começar pelos Estados Unidos, com os quais os franceses têm uma relação complexa de amor-ódio ou, se quisermos, de fascínio ressentido.

Obviamente, o “espírito francês” é muito mais denso – e, por vezes, contraditório – do que esta análise de um discurso de Dominique de Villepin em Nova Iorque pode levar a crer. O livro de Hazareesingh demonstra-o, através de numerosos exemplos e de um escrutínio muito mais profundo do que aquele que se acaba de expor.

No início, afirma – o que não é muito original, convém dizê-lo – que o pensamento e o discurso franceses continuam ainda muito marcados por metáforas, imagens e conceitos de origem religiosa, procedentes do catolicismo e transferidos para uma esfera pública secular e, com frequência, militantemente laica.

Depois, indo mais fundo, Hazareesingh nomeia alguns traços característicos do modo como os franceses se auto-representam e se projectam para o exterior: uma crença arreigada, entranhada até à medula do espírito, na capacidade de produzir um pensamento original e inovador; o sentimento da excepcionalidade da aptidão gaulesa para a lucidez, muito baseado na proclamação da clareza límpida da sua língua; a combinação desta precisão cartesiana com uma propensão para alguma leveza hedonista e para a sedução retórica, ou seja, para aquilo que Montesquieu definiu como a capacidade gaulesa para “tornar sérias questões frívolas e tratar frivolamente questões sérias”.

Acima de tudo, desde os intelectuais da Academia aos estudantes ou operários que discutem acesamente nos bistrôs e nas cantinas das fábricas, o modo como os franceses pensam é marcado pela sua paixão por noções gerais e abstractas. Há uma inclinação irreprimível para abordar todas as questões da vida, da mais transcendente à mais comezinha, a partir de conceitos, digamos assim, metafísicos ou filosóficos. Até para falar sobre como é difícil encontrar pão fresco durante as férias de verão se convocam noções e conceitos como república, racionalidade, vontade geral ou proletariado.

A par disso, há uma pulsão holística que leva os franceses a tomarem qualquer questão como um “problema total” em vez de a assumirem como manifestação contingente de uma realidade específica e concreta, delimitada no espaço e no tempo. O magno problema do pão fresco na época estival leva-os a embrenharem-se em discussões intermináveis (e os franceses adoram a discussão e a troca de argumento) sobre o futuro da República, o multiculturalismo, o caos dos subúrbios e a ameaça dos imigrantes, a falta de mão-de-obra a par do desemprego, a América de Trump, a genialidade perversa de Houellebecq, etc., etc.

Em 1944, o exército britânico distribuiu um manual de campanha pelos soldados que estavam prestes a desembarcar na Normandia. Nesse guia, dizia-se: “de longe, os franceses gostam muito mais do que nós de grandes debates intelectuais. Por vezes, julgamos que dois franceses estão a ter uma discussão violenta quando, na realidade, estão apenas a trocar pontos de vista sobre uma questão abstracta”.

Dificilmente se encontraria uma melhor síntese sobre “How the French think” e sobre a devoção gaulesa pela “cultura”. Não admira, pois, que o livro de Hazareesingh tenha sido traduzido de imediato em França, com o título “Ce pays qui aime les idées: histoire d’une passion française”, conquistando em 2015 o… Grand Prix du Livre des Idées.

Apesar de cáustico e acidamente irónico, o retrato de Hazareesingh não menospreza os franceses nem o seu estranho modo de vida, como acontece com frequência em algumas abordagens da cultura gaulesa feitas no universo anglo-saxónico.

Pelo contrário, “How the French think” é um livro que só poderia ser escrito por alguém que tem uma atracção e um respeito imensos por França e pelo seu legado cultural, sem que isso lhe faça perder a lucidez ou turve a nitidez da visão. Mas também é inquestionável que uma obra como esta dificilmente poderia ter sido escrita por um francês… Em suma, vive la France, malgré la France.

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