
Votar em Lisboa é ouro. Votar no Interior são trocos
Domingo, quando for votar, lembre-se que o método D’Hondt transforma votos em poder, mas só para alguns. Em Portugal, a democracia é matemática, mas pouco justa.
No próximo domingo, enquanto estiver na fila para votar a pensar que o seu voto vale o mesmo que o do seu vizinho, há um belga do século XIX a sorrir no além. Chama-se Victor D’Hondt e, sem que a maioria dos portugueses o saiba, é o método dele que realmente decide quantos deputados cada partido vai eleger para a Assembleia da República.
D’Hondt, advogado belga nascido em 1841 e falecido em 1901, nunca poderia imaginar que o seu nome seria pronunciado em Portugal mais vezes que o de muitos ex-primeiros-ministros. Professor de Direito Civil na Universidade de Gand desde 1885, D’Hondt criou um método matemático para converter votos em mandatos que acabou por ser adotado em diversos países, incluindo em Portugal.
Curiosamente, o método não é uma novidade da democracia pós-25 de Abril. Já em 1911, nas eleições para a Assembleia Constituinte, foi utilizado nos círculos de Lisboa e Porto. Este facto histórico foi, aliás, um dos principais argumentos para a sua consagração na Lei Eleitoral para a Assembleia Constituinte após o 25 de Abril e, posteriormente, para a sua constitucionalização no número 1 do artigo 149.º da Constituição da República. É como aquela receita de bacalhau da avó que ninguém ousa modificar, mesmo sabendo que os tempos e os ingredientes já não são os mesmos.
A desigualdade proporcionada pelo método Hondt não é apenas entre partidos, mas também geográfica. Em Lisboa, 90% dos votos elegem deputados. Em Portalegre, quase metade (49,5%) dos votos são “desperdiçados”.
Vamos imaginar que está a dividir uma pizza entre amigos, mas alguns amigos são mais importantes que outros (sim, é assim que funciona a nossa democracia, lamento informar). O método D’Hondt é como se dividisse a pizza não pelo número de pessoas, mas pelo “tamanho” de cada uma. Na prática, o método divide o número total de votos obtidos por cada partido por uma sequência de divisores: 1, 2, 3, 4 e assim sucessivamente. Depois, os mandatos são atribuídos às maiores divisões resultantes.
Vamos a um exemplo prático: imagine o círculo eleitoral “XPTO” que elege 8 deputados e tem 4 partidos concorrentes: A, B, C e D, com respetivamente 16.500, 15.000, 12.000 e 4.500 votos. Aplicando o método, dividimos os votos de cada partido pelos divisores sucessivos:
Depois, selecionamos os 8 maiores quocientes: 16.500, 12.000, 8.250, 7.500, 6.000, 5.500, 4.125 e 4.000. Isto significa que o partido A leva 4 deputados, B fica com 3, e o partido C com apenas 1. O partido D, coitado, “fica a ver navios”. E assim, o nosso “amigo” Victor D’Hondt acabou de decidir quem vai para a Assembleia da República.
Nas eleições de 18 de maio a matemática será a mesma, mas as dimensões são bem diferentes. Lisboa, o círculo eleitoral mais poderoso, elegerá 48 deputados, enquanto o Porto enviará 40. Braga e Setúbal contribuirão com 19 cada. Já Portalegre e os círculos da emigração (Europa e Fora da Europa) só elegem 2 deputados cada. É como se Lisboa fosse aquele primo rico que ocupa metade da mesa no jantar de família, enquanto Portalegre tem de se contentar com o banquinho da cozinha.
No total, serão eleitos 230 deputados, representando mais de 10,85 milhões de eleitores inscritos. Mas aqui está o grande truque de ilusionismo: nem todos os votos têm o mesmo peso real.
Não é surpresa para ninguém que o método Hondt beneficia quem já tem poder – os grandes partidos. O estudo “Os votos sem representatividade” elaborado pelo matemático Henrique Oliveira, do Instituto Superior Técnico, revela que o PS consegue converter 92,4% dos seus votos em mandatos, a AD 92% e o Chega 90,7%. É como se houvesse um desafio de patinagem onde os juízes dão pontuação extra aos concorrentes que já estão em primeiro lugar.
Quem tem o poder de mudar o sistema eleitoral são os mesmos que se beneficiam dele. Ou seja, os grandes partidos não têm interesse em alterar um método que lhes é favorável.
Por outro lado, os partidos pequenos conseguem converter apenas entre 40% a 45% dos seus votos em mandatos. Nas últimas eleições, o PAN precisou de 126.805 votos para conseguir um mandato, enquanto o PS só precisou de 23.237 votos para eleger um deputado – ou seja, o PAN precisou de cinco vezes mais votos que o PS. Imaginem um restaurante onde alguns clientes pagam cinco vezes mais pela mesma sobremesa!
A desigualdade não é apenas entre partidos, mas também geográfica. Em Lisboa, 90% dos votos elegem deputados. Em Portalegre, quase metade (49,5%) dos votos são “desperdiçados”. Isto significa que um voto em Lisboa vale mais que um voto em Portalegre. “É um défice que existe na democracia portuguesa”, como refere Henrique Oliveira à RTP, sublinhando ainda que “o interior já é, muitas vezes, esquecido, e ainda por cima vale menos, em termos democráticos, do que o litoral”. Nada como adicionar insulto à injúria.
As alternativas que ninguém quer implementar (adivinhe porquê)
Existem várias alternativas ao método de Hondt. É o caso do método de Sainte-Laguë (com divisores 1, 3, 5, 7, etc.), o método Sainte-Laguë modificado (1.4, 3, 5, 7, etc.), o método Dinamarquês (1, 4, 7, 10, 13, etc.), ou até o método de Hamilton com quociente de Hare. Outra alternativa é o sistema usado na Islândia e na Noruega, com um círculo de compensação nacional que permite um “reaproveitamento” dos votos desperdiçados.
Então, por que não mudamos? Bem, quem tem o poder de mudar o sistema são os mesmos que beneficiam dele. Ou seja, os grandes partidos não têm interesse em alterar um método que lhes é favorável. É como pedir aos leões que aprovem leis que beneficiem as gazelas.
O manifesto “Reformar o Sistema Eleitoral: Renovar a Democracia”, de julho do ano passado, assinado por 25 personalidades, incluindo António Vitorino e Luís Marques Mendes, pediu uma reforma do sistema eleitoral para diminuir o desperdício de votos. O documento afirma que “Portugal está em contracorrente”, já que integra “um grupo muito reduzido de três países da União Europeia em que só é possível votar em listas partidárias (listas fechadas) nas eleições legislativas”.
“o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Talvez seja hora de acrescentar que “o poder matemático sobre a democracia corrompe proporcionalmente”.
No domingo, dia 18 de maio, quando for votar, lembre-se de que o seu voto vai passar pelas mãos do senhor D’Hondt antes de virar realmente poder. Se vive no interior, saiba que, infelizmente, o seu voto vale menos que um voto de um alfacinha ou de um portuense. Se apoia um partido pequeno, tenha ciência de que muitas vezes está apenas a contribuir para as estatísticas.
Enquanto isso, os grandes partidos continuarão a defender o método D’Hondt com unhas e dentes, alegando que garante “estabilidade governamental”. No entanto, como mostrou a queda do governo de Luís Montenegro a 11 de março não parece que haja essa necessidade.
Talvez seja hora de repensar se queremos um sistema que promove a democracia ou que perpetua o poder estabelecido. Quem sabe, nas eleições de 2029, não estaremos a explicar um novo método eleitoral. Mas não aposte nisso – os belgas do século XIX ainda têm muito poder em Portugal.
O historiador britânico Lord Acton afirmou que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Talvez seja hora de acrescentar que “o poder matemático sobre a democracia corrompe proporcionalmente”.
E enquanto estivermos distraídos com arruadas, propaganda política e parcas ideias para Portugal, o verdadeiro poder continuará a ser determinado por um algoritmo belga do século XIX que poucos compreendem e ainda menos ousam desafiar. Afinal, a verdadeira magia da democracia está no facto de nos fazer acreditar que todos os votos são iguais, quando matematicamente sabemos que não são.
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