Uma ordem dada na bolsa de Lisboa percorre 1.700 quilómetros até à cidade italiana de Bérgamo em 25 milissegundos. É lá onde o coração da Euronext “bate” ao ritmo de 12 mil milhões de euros por dia.
Um investidor dá uma ordem na bolsa de Lisboa. 25 milissegundos depois, a mensagem chega a Bérgamo, norte de Itália, onde é processada a 1.700 quilómetros da capital portuguesa. Um sinal pisca num servidor. Negócio fechado.
Desde o verão passado que o coração da Euronext – que opera as praças de Lisboa, Paris ou Amesterdão – passou bater na pequena localidade bergamesca de Ponte San Pietro, a uma hora de Milão, num imponente bunker fechado a sete chaves e que dá proteção a centenas de computadores alimentados a energia 100% renovável.
São estas máquinas que processam as transações na bolsa a um ritmo alucinante de 12 mil milhões de euros por dia, numa infraestrutura e processos que dão vida e forma àquilo que apenas nos parece ser algo intangível: o mercado.
“Aqui é a verdadeira bolsa, onde tudo acontece”, aponta Manuel Bento, antes nos convidar a entrar no edifício.
A bolsa pode ser um lugar aborrecido para muitos. E um centro de dados que lhe dá corpo não será muito mais excitante. Mas esta perspetiva muda para quem de alguma forma vive deste negócio ou sabe o que aqui está em causa.
Um piscar de luzes no servidor significa uma transação entre dois investidores em diferentes pontos. Trocaram ações de um banco, fabricante de carros ou uma empresa de papel que financia a sua atividade, cria emprego e fornece os produtos e serviços que consumimos no dia-a-dia com o dinheiro obtido no mercado público.
Pela nova fortaleza da Euronext passa 25% do volume de ações negociadas na Europa. No total, as cerca de 2.000 empresas cotadas na Euronext (opera 7 bolsas de valores – Amesterdão, Bruxelas, Dublin, Lisboa, Milão, Oslo e Paris – e ainda 4 centros de liquidação e custódia – Copenhaga, Milão, Oslo e Porto) têm uma capitalização de 5,7 biliões de euros, duas vezes mais do que a bolsa de Frankfurt e o triplo da praça de Londres.
Foi sob o comando daquele português natural de Trás-os-Montes, e atual diretor de operações da Euronext, que o processo de migração do centro de dados desde Basildon, no Reino Unido, até ao norte de Itália, se fez em tempo recorde: 14 meses.
Manuel Bento reconhece as dificuldades de ter levado a cabo uma operação desta envergadura, num período marcado pela pandemia e pela maior crise de escassez de chips de sempre. “Quando decidimos mudar, liguei de imediato para os nossos vendors na Califórnia para que dessem prioridade às minhas encomendas”, conta quem ainda tem de executar mais migrações nos próximos meses – incluindo a bolsa italiana, que a Euronext acabou de comprar.
Máquinas desenham os altos e baixos da bolsa
Não é qualquer um que alcança o centro do edifício. A segurança é muito apertada. Para chegar à “caixa-forte” temos de passar sete camadas de segurança, de portas e paredes, autenticações duplas, com cartão, códigos e impressões digitais, explica Giancarlo Giacomello, responsável da empresa Aruba que faz a gestão do complexo, enquanto nos vai abrindo caminho.
À medida que superamos cada camada, ouvimos com maior intensidade o zumbido de fundo das máquinas a trabalharem furiosamente.
“Onde dantes tínhamos um trading floor barulhento com os investidores, agora temos uma sala igualmente barulhenta, mas por causa dos servidores. E é realmente barulhenta”, já nos tinha avisado Manuel Bento. O trading floor agora é uma peça de museu.
Mais uma porta e alcançamos finalmente o coração da bolsa. Uma grade impede-nos de tocar com os dedos os chamados racks. Vemos um espetáculo de luzinhas a piscarem nervosamente.
Onde dantes tínhamos um trading floor barulhento com os investidores, agora temos uma sala igualmente barulhenta, mas por causa dos servidores. E é realmente barulhenta.
Os racks são os armários onde estão colocados os servidores dos clientes (grandes bancos e corretoras que estão no negócio da low latency) e da Euronext e ligados num sistema de 800 quilómetros de cabos escondidos por debaixo. Também há conectividade com o exterior para garantir que quem está remoto também possa participar.
Em termos técnicos, o que acabamos de ver ali no centro resume um processo relativamente simples: os computadores recebem as mensagens de um investidor em forma de bytes, que se transformam em ordens (de compra ou venda) assim que lá chega; depois, faz-se a correspondência dentro do matching engine (motor de correspondência entre ordens de compra e venda); no final, o investidor recebe as ordens correspondentes e é feito broadcast da informação para todo o mercado com as variações das cotações. Se quisermos, ali se desenham os altos e baixos da bolsa.
Tudo isto é feito em tempo quase real. A 1.700 quilómetros, um investidor em Lisboa coloca a sua ordem no centro de dados de Bérgamo numa questão de 20 a 25 milissegundos. Mas para quem tem o serviço de colocation (isto é, tem um servidor próprio nas racks), o tempo desce para 10 milissegundos, tentando aproveitar a baixa latência para fazer a diferença que pode significar milhões de euros entre o piscar de olhos.
Cabe às equipas da Euronext e da Aruba assegurar que nada falhe. Todo o equipamento existe em duplicado, há backups de backups de backups, tudo para garantir a continuidade das operações.
As temperaturas das máquinas são reguladas com recurso a energia geotérmica. O centro capta água subterrânea entre 10°C a 15°C, que uma rede de tubos trata de transportar para o centro para resfriar os computadores. A água é depois levada de volta para o fundo da terra entre 20°C a 24°C, após cumprir a missão.
Também há redundâncias no sistema de energia que alimenta o coração. O edifício é alimentado por painéis solares que cobrem o telhado e o rio que passa ali ao lado é aproveitado como fonte de energia hídrica. Se falharem, entram os geradores em ação.
Um jogo de soberania
O novo centro de dados “não é apenas um edifício”, diz-nos Stéphane Boujnah, CEO da Euronext. Responde a várias ambições da empresa em termos de crescimento de negócio (o grupo espera sinergias de 100 milhões com a migração) e ambientais (quer reduzir as emissões de carbono em 70% até final da década). Mas também da Europa, que nos tempos mais recentes da pandemia e da guerra se apercebeu da importância de ter infraestruturas físicas dentro de portas.
No início do milénio, a Euronext mudou o centro de dados de Paris para Inglaterra, pois Londres era o centro financeiro da União Europeia. O Brexit veio mudar as regras do jogo.
“Queríamos trazer o centro de dados para a União Europeia. (…) O que estamos a fazer é criar uma situação onde os europeus podem gerir as suas estratégias de infraestruturas dentro da União Europeia, num ambiente regulatório previsível e num país [Itália] com operações significativas”, explica Stéphane Boujnah.
O responsável diz que as pessoas têm uma ideia errada do que é a “cloud”. “Leiam os meus lábios: a cloud não existe. O que existe é o centro de dados da Google e o centro de dados da Amazon”.
Queríamos trazer o centro de dados para a União Europeia. (…) O que estamos a fazer é criar uma situação onde os europeus podem gerir as suas estratégias de infraestruturas dentro da União Europeia, num ambiente regulatório previsível e num país [Itália] com operações significativas.
Na verdade, acrescenta, “a substância da economia digital está em servidores reais, circula em cabos reais, está hospedada em centros de dados reais”. E quem detém estes centros de dados manda.
O novo centro de dados demonstra o “compromisso europeu do projeto da Euronext”, completa Stéphane Boujnah. O que não deixa de ser assinalável numa Europa que batalha pela soberania também no campo das infraestruturas vitais como a dos mercados de capitais.
O jornalista viajou a Milão a convite da Euronext.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A 1.700 quilómetros de Lisboa bate o coração da bolsa
{{ noCommentsLabel }}