Norma-travão? O que fez o PS nos retificativos do tempo da troika
O Governo enviou um parecer para "recordar", segundo António Costa, das regras diferentes dos orçamentos suplementares. Contudo, como lembraram os partidos, a prática do PS não as seguiu a 100%.
Marques Mendes revelou no domingo um parecer que o Governo enviou ao Parlamento em que recorda um acórdão do Tribunal Constitucional (TC) de 1986 que, na prática, limita os poderes dos deputados no Orçamento Suplementar. Da esquerda à direita, os partidos queixaram-se, recusaram uma interpretação restritiva da norma-travão, acusando o Governo de práticas pouco democráticas. Além disso, lembraram que esta não foi a prática do passado, até porque o próprio PS fez propostas em retificativos que aumentavam a despesa, diminuíam a receita ou que versavam sobre alíneas que o Governo de então não queria alterar. A polémica deverá marcar a discussão na generalidade do Orçamento Suplementar desta quarta-feira à tarde.
O primeiro a dar o alerta foi Luís Marques Mendes, comentador da SIC, que acusava o Governo PS de contradição: “Recordo que, quando Passos Coelho apresentou orçamentos retificativos, o PS propôs a redução do IVA da restauração, do IVA da energia ou a compensação pelos cortes de salários na Função Pública”, disse, assinalando que estas propostas “não seriam possíveis” à luz deste parecer do Centro de Competências Jurídicas da Presidência do Conselho de Ministros.
Em reação ao parecer, também a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, recordou o passado: “O último Orçamento Retificativo foi em 2013 e nenhum partido se coibiu de fazer propostas de alteração a esse Orçamento Retificativo”, lembrou, referindo que o PS “apresentou a descida do IVA da restauração, apresentou alterações à lei dos compromissos e uma medida sobre rendas da energia”. Já o PCP acusou o parecer de ter uma interpretação restritiva.
A deputada do CDS, Cecília Meireles, seguiu o mesmo argumento e acrescentou que houve medidas recentes aprovadas pelo PS que violam a norma-travão como a gratuitidade da linha SNS24, as medidas de apoio às empresas itinerantes de diversão e restauração ou o diploma que cria um regime especial de incentivo às feiras e mercados. A mesma ideia foi transmitida pelo PSD: “Sempre houve alterações, o próprio PS apresentou várias vezes propostas de alteração em outros orçamentos retificativos”, acrescentou Afonso Oliveira, deputado do PSD, ao Negócios.
De facto, no passado, em específico no primeiro Orçamento Retificativo de 2013, o PS fez o que agora quer evitar, tanto do lado da receita como da despesa: segundo este documento que consta do site do Parlamento, os socialistas propuseram, ainda sob a liderança de António José Seguro mas com vários responsáveis intermédios que se repetem, a descida do IVA da restauração para 13%, o que implicaria uma redução da receita (se o aumento do consumo via baixa dos impostos não fosse compensar, o que é imprevisível). O rectificativo de 2013 do Governo PSD/CDS não propunha mudanças nesta matéria dado que a subida do IVA da restauração deu-se em 2012.
E o PS propôs ainda a prorrogação do subsídio social de desemprego por mais seis meses, o que iria aumentar esta despesa face ao previsto no OE, principalmente numa altura em que a taxa de desemprego estava a crescer. O próprio PS reconhecia, segundo o Público, que esta prorrogação teria um impacto orçamental anual na ordem dos 50 milhões de euros. Segundo a pesquisa do ECO ao processo orçamental dos vários retificativos do tempo da troika no site do Parlamento, apenas no primeiro retificativo de 2013 é que se encontram propostas do PS com impacto orçamental.
Esta tensão provocada pela norma-travão, aliás, não é nova, tendo sido recorrente ao longo dos últimos cinco anos: o Governo ou o PS já enviaram vários diplomas aprovados no Parlamento para fiscalização do TC citando a norma-travão. Mais recentemente, na sequência da pandemia, o PS ameaçou (mas não concretizou ainda) enviar para o Palácio Ratton o alargamento dos apoios aos sócios-gerentes. A diferença é que agora a dúvida está numa alteração ao OE e não em propostas fora do processo orçamental.
Estas situações têm resultado de coligações negativas — uma vez que o PS não tem uma maioria parlamentar, ao contrário do que acontecia no Governo PSD/CDS — que juntam a esquerda e a direita contra o Governo. Esta condicionante do Governo PS deverá levar a que esta questão seja resolvida na negociação parlamentar uma vez que, na prática, a última palavra é dos deputados dado que o Orçamento Suplementar tem de ter a “luz verde” do Parlamento e os deputados socialistas não são suficientes para o aprovar.
A opinião entre os constitucionalistas sobre os limites do Parlamento nas alterações ao Orçamento Suplementar não é unânime, trata-se de um assunto complexo e que divide os especialistas. Para Jorge Miranda, muitas vezes apelidado de “pai da Constituição portuguesa”, e Bacelar Gouveia, o Orçamento Suplementar tem um estatuto idêntico ao do Orçamento do Estado e, como tal, os deputados podem propor aumentos de despesa. Já Tiago Duarte, que fez uma tese de doutoramento sobre o tema, defende o ponto de vista de Carlos Blanco de Morais, o autor do parecer, admitindo apenas um aumento da despesa dentro dos limites já pré-definidos pela proposta de alteração do Governo.
Em causa estão duas dúvidas: a primeira é se os deputados podem fazer mudanças ao Orçamento do Estado além das alíneas da proposta de alteração do Governo (que é de iniciativa exclusiva do Executivo) ao OE; e a segunda é se os deputados podem ou não aumentar a despesa ou diminuir a receita — ou até medidas compensatórias, caso em que a discussão complica-se ainda mais — além do proposto pelo Ministério das Finanças, nomeadamente propondo alterações “que descaracterizem a proposta governamental ou que tenham como efeito uma modificação inovadora da lei do Orçamento do Estado em vigor”.
A divergência centra-se na interpretação e na aplicação ao Orçamento Suplementar da norma-travão do número 2 do artigo 167 da Constituição: “Os deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento“.
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