Chega “promove” federação sindical alternativa à CGTP e UGT. Há futuro para um sindicato de direita?

  • Joana Abrantes Gomes
  • 23 Outubro 2022

O Solidariedade quer sair à rua para reivindicar um espaço que sempre pertenceu à CGTP e UGT. Mas vai precisar de conseguir fidelizar trabalhadores caso deseje sentar-se na mesa da concertação social.

Em 2020, André Ventura afirmava que “as ruas são de direita desde o aparecimento do Chega”. Agora, o líder do partido de extrema-direita anuncia um movimento sindical, em alternativa à CGTP-IN e à UGT, tradicionalmente mais ligados à esquerda. Será o primeiro de direita em Portugal, inspirado no “Solidaridad” do partido ‘irmão’ Vox da vizinha Espanha. Mas porquê “promover” este sindicato? O futuro pode passar por um lugar à mesa da concertação social?

Foi na passada segunda-feira que decorreu a apresentação do “Solidariedade”. “O Chega, baseado no modelo espanhol, decidiu promover – não criar, porque não o pode fazer por lei –, dialogar para incentivar a criação de uma federação sindical”, disse André Ventura, numa conferência de imprensa na sede nacional do partido.

O líder do Chega refere-se à federação nacional de sindicatos que nasceu em Espanha, pelas mãos do partido de extrema-direita Vox, e que também se chama “Solidaridad”. Este, por sua vez, já tinha ido buscar inspiração ao movimento anticomunista polaco criado por Lech Walesa na década de 1980 – mas André Ventura é perentório ao afirmar que “o Chega não tem nenhuma obsessão em acabar com o PCP”.

Os princípios deste novo movimento sindical serão os mesmos das confederações já conhecidas: reivindicar melhores salários e valorização das carreiras dos trabalhadores. Isto porque, nas palavras do líder do Chega, “a valorização dos trabalhadores, dos seus salários e das suas carreiras não é uma questão de esquerda, nem de centro, nem de direita, é uma questão do interesse nacional“.

De facto, Portugal não tem uma história de mobilização de rua e protesto político à direita do PS. O PSD e o CDS-PP apenas criaram organizações autónomas dentro dos seus partidos: os Trabalhadores Social Democratas (PSD) e a Federação dos Trabalhadores Democrata-Cristãos (CDS-PP). O Chega, em vez disso, está a tentar participar no movimento sindical já institucionalizado e ocupar esse espaço vazio à direita.

Contudo, Ventura irá deparar-se com alguns desafios para concretizar a sua intenção de “promover” uma “alternativa sindicalista” à “esquerda e à luta de classes”. Desde logo o facto de que o número de trabalhadores sindicalizados em Portugal tem vindo a diminuir. Trata-se, aliás, de uma “tendência genérica das economias ocidentais”, nomeadamente nos EUA, no Reino Unido e em França, sublinha ao ECO o economista João Cerejeira.

“Para haver uma central sindical têm de haver sindicatos já formados ou criar novos sindicatos”, recorda o também investigador da Universidade do Minho. Não obstante, o presidente do Chega já garantiu que serão criados sindicatos “de raiz” para polícias, professores, funcionários públicos, profissionais de saúde e profissionais de segurança – as áreas-chave de atuação. “O que não quer dizer que não possam outros sindicatos aderir à federação, nomeadamente alguns sindicatos de polícias”, rematou Ventura, na conferência de imprensa.

João Cerejeira considera que o Chega percebeu que existe “algum descontentamento dos trabalhadores com a oferta sindical que existe atualmente – e daí (resulta), talvez, alguma dessa diminuição da presença dos sindicatos no mundo do trabalho”. Nesse sentido, dá o movimento dos camionistas como exemplo de reivindicação laboral “mais espontânea e reativa a fenómenos pontuais” que surgiu à margem dos sindicatos, ao mesmo tempo que reconhece em algumas ordens profissionais, como a dos médicos, o papel que tradicionalmente deveria ser dos sindicatos.

"Mas, assim como esses movimentos marginais têm mais capacidade de intervenção no curto prazo e, portanto, de mobilização aparente pelo menos nas redes sociais, não tendo uma estrutura, depois desaparecem mais rapidamente. Ou seja, o movimento sindical também precisa de uma estrutura porque a negociação tem de ter um interlocutor válido do outro lado e que se mantém ao longo do tempo. A negociação é algo contínuo, é dinâmica, não é uma coisa estática.

João Cerejeira

Professor na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

 

O doutorando em Política Comparada, Hugo Ferrinho Lopes, aponta mesmo que a “promoção” do Solidariedade “pode ser entendida como o erguer de uma organização que faça a ligação entre o partido e a sociedade civil“, procurando até “aproximar as elites partidárias das massas trabalhadoras”. “É inteligente, mas é igualmente um reconhecimento de que o partido não o tem conseguido fazer sozinho“, salienta.

Além de procurar entrar num espaço associado, por norma, a partidos de esquerda, o “Solidariedade” é também um “statement político” porque “procura seguir o exemplo de alguns dos seus congéneres noutros países europeus, ao mesmo tempo que adota um modelo organizacional que se aproxima mais do caso português“, refere Ferrinho Lopes. Ou seja, “demonstra que tem noção que, nestes países, apesar do aumento do potencial eleitoral da direita radical junto do eleitorado sindicalizado, o seu sucesso no meio sindical é discutível”.

“O Chega quer implementar um modelo ibérico, evitando, assim, cometer os eventuais erros da direita radical noutros contextos, ao mesmo tempo que ‘pisca o olho’ a outros países, como a Polónia, onde o sindicalismo antissoviético teve uma força relevante no final do século XX”, resume o também investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL).

Mas, afinal, o que é preciso para a criação deste movimento? Ao ECO, a investigadora do ICS-UL Raquel Rego, que estuda os movimentos sindicais, explica que existe uma lei própria destas associações desde 1975 e cuja observância do cumprimento do quadro legal cabe aos serviços do Ministério do Trabalho, designadamente à Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT). “Se a organização for democrática – com corpos dirigentes eleitos, etc. – e independente de partidos políticos, deverá ser aceite como legítima“, afirma.

Ser independente, no entanto, não significa que não tenha o “direito de tendência”, o que pode corresponder a “subscrever uma ideologia partidária”, indica Raquel Rego. Frisando que a “representação da diversidade de interesses – de categorias profissionais, regionais, religiosas e outras – é útil à democracia”, a investigadora do ICS-UL ressalva que, para isso, “precisa ela própria de ser feita de modo democrático, designadamente assumindo essa tendência estatutariamente”.

"Notou-se em 2018-2019 que elementos do Chega terão sido particularmente ativos nos sindicatos de polícia e no Movimento Zero. Chamo a atenção que, no final de 2019, foi revista a lei dos sindicatos de polícia justamente para regular a proliferação de organizações sindicais da PSP e impor critérios mais estreitos de representatividade que levou vários sindicatos a serem excluídos do diálogo com o Ministério da Administração Interna.

Raquel Rego

Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

O “Solidariedade” pode vir a sentar-se à mesa da concertação social?

Questionado pelo ECO se tenciona que o movimento por si “promovido” possa vir a ter lugar na negociação coletiva, o Chega não respondeu até à data da publicação deste artigo. Porém, os investigadores apontam que será difícil tal acontecer, embora não fosse a primeira vez que organizações da sociedade civil reclamassem serem incluídas na Comissão Permanente de Concertação Social.

“O que prevalece é o ‘mútuo reconhecimento’, ou seja, as organizações com quem se quer estabelecer o diálogo têm de reconhecer que os seus interlocutores são elegíveis para o diálogo. Ora, não me parece que nenhuma das partes – Governo, confederações patronais e sindicais – o fizesse no panorama atual“, realça Raquel Rego.

No mesmo sentido aponta João Cerejeira, lembrando a necessidade de fidelizar trabalhadores. Ainda que reconheça que há oportunidades de canalizar algum mal-estar da classe trabalhadora, duvida que seja através de um sindicato associado ao Chega, até porque ainda persiste no partido “alguma indefinição ideológica”. “Não é fácil” passar de um movimento de natureza inorgânica para um de natureza orgânica e estruturada, e “nem todas as pessoas que se manifestaram e que tiveram algum tipo de intervenção nesses movimentos estarão interessadas em entrar num sindicato apoiado pelo Chega”, pelo que, “enquanto não tiver representatividade, não faz sentido nenhum“, acrescenta.

Para ter lugar à mesa da negociação coletiva, Hugo Ferrinho Lopes recorda ainda outra questão: é precisa uma alteração ao seu regulamento interno, nomeadamente no que diz respeito aos membros que a compõem. Essa alteração, todavia, terá de ser proposta pelo núcleo coordenador ou por um terço dos membros do plenário do Conselho Económico e Social para ser votado nesse fórum.

“Esse não é um objetivo fácil de concretizar. Precisa de quem subscreva a proposta e, ainda, da maioria dos votos favoráveis para ser integrado na Comissão Permanente da Segurança Social. Portanto, precisa de alianças“, nota o investigador do ICS-UL.

De qualquer maneira, se a DGERT registar este movimento, ele passará a ser legal e, não havendo critérios “objetivos e previsíveis” de representatividade, como recomenda a Organização Internacional do Trabalho (OIT), passa a ter direito a ser ouvido em diversas instâncias, podendo inclusivamente fazer negociação coletiva.

Nesse caso, há riscos para as principais confederações sindicais existentes? “Penso que podem haver riscos de termos convenções coletivas de trabalho que sejam muito conservadoras e mesmo antidemocráticas, ao mesmo tempo que é de admitir nesse caso que sejam postas de lado as federações e sindicatos da CGTP-IN e UGT“, admite Raquel Rego.

"Não querendo fazer futurologia, na teoria, é expectável que haja uma certa tentativa de ocupação do seu espaço político. As duas confederações sindicais não terão certamente interesse em perder o seu monopólio de representação dos interesses dos trabalhadores. Mas o ‘Solidariedade’ terá todo o interesse em ocupar espaço político, mediático e de rua, tentando também competir na contagem dos números presentes nas ações de cada sindicato.

Hugo Ferrinho Lopes

Doutorando em Política Comparada e Investigador no ICS-UL

 

João Cerejeira também não acredita que o “Solidariedade” possa vir a ser uma alternativa à CGTP e à UGT. “Pode ter do ponto de vista de comunicação e de presença nos meios de comunicação, mas agora em termos do número de trabalhadores, do número de pessoas que estarão dispostas a aderir e de ter um peso grande dentro do mundo do trabalho atual, creio que será muito difícil de ter uma implantação” a não ser em alguns grupos específicos e com efeito grande em termos mediáticos.

Apesar de André Ventura ter afirmado, em 2020, que “as ruas são de direita desde o aparecimento do Chega”, ainda não há demonstrações desse facto. “Só o tempo permitirá perceber qual a real capacidade de mobilização do Solidariedade e em que medida conseguirá cumprir os objetivos a que se propõe. No limite, poderá ser útil para André Ventura satisfazer clientelas partidárias ou promover novos quadros que, fruto da recência do partido e da inexistência de eleições a curto prazo, não têm ainda lugar dentro da estrutura partidária. Tal também lhe permite fiscalizar as qualidades e as lealdades desses elementos antes de ponderar colocá-los em listas eleitorais”, conclui Hugo Ferrinho Lopes.

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