Saíram de casa e quando voltaram deparam-se com ‘okupas’. Ocupações ilegais em Espanha aumentam

As denúncias por ocupação ilegal aumentaram 40% nos últimos quatro anos. Advogados e proprietários queixam-se da lentidão da justiça. Pelo meio, crescem empresas privadas especialistas em desocupação.

António (nome fictício) está há quase três anos à espera de poder voltar a entrar na sua casa, que foi ocupada de forma ilegal. O tribunal não pode desalojar os ‘okupas’ pois, segundo os serviços sociais espanhóis, são pessoas em situação de vulnerabilidade.

Mari Carmen Serra, além de ter a casa ‘okupada’, tem o seu salário penhorado porque, durante o processo de desalojamento, o proprietário continua obrigado a pagar as faturas dos serviços básicos.

A lei espanhola não permite privar os ‘okupas’ de água, luz e gás. Sem uma solução rápida à vista, os proprietários recorrem cada vez mais a empresas privadas especializadas em desalojamento de ‘okupas’.

António e Mari Carmen Serra são apenas dois dos mais de 43 casos de ocupação que se registaram diariamente em Espanha durante os últimos quatro anos, dos quais 37% diziam respeito a ocupações de casas habitadas.

As denúncias por ocupação ilegal aumentaram 40% nos últimos quatro anos, de acordo com dados oficiais do Ministério do Interior espanhol. Só no ano passado, registaram-se 17.274 casos de ocupação.

A frequência com que estes casos sucedem, em várias cidades espanholas, já obrigou mesmo a um novo verbo inscrito na Real Academia Española (RAE). ‘Okupar’, com “k”, figura desde 2007 no dicionário espanhol. Significa “entrar numa casa ou num edifício desabitado e instalar-se sem o consentimento do proprietário”. A introdução da letra “k” na palavra é totalmente propositada, pretendendo refletir a vontade de transgressão das normas, neste caso ortográficas.

Não desejo o sofrimento pelo qual estamos a passar e a impotência que sinto a ninguém. Recorri à Guarda Civil, à Polícia Nacional, à Câmara de Municipal de Alcudia… Não podem fazer nada. A Lei ata-lhes os pés e as mãos no momento de atuar.

Mari Carmen Serra

No ano passado, após decidir deixar a capital espanhola e ir definitivamente para a sua casa em Alcudia (Maiorca), Mari Carmen Serra deparou-se com o seu imóvel ‘okupado’. Sem outra solução em vista, viu-se obrigada a ficar na casa da sua irmã enquanto a situação não se resolvia.

Mais tarde, ainda sem acesso à sua casa, chegou-lhe outra notícia inesperada: o seu salário iria ser penhorado para pagar as faturas dos serviços, que estavam no seu nome. “Não desejo a ninguém o sofrimento pelo qual estamos a passar e a impotência que sinto”, refere Mari Carmen Serra.

“Recorri à Guarda Civil, à Polícia Nacional, à Câmara Municipal de Alcudia… Não podem fazer nada. A Lei ata-lhes os pés e as mãos no momento de atuar. Pago uma prestação, mas tenho de viver na casa da minha irmã. Não é justo”, lamenta Mari Carmen Serra, em declarações ao Periódico de Ibiza (acesso livre, conteúdo em espanhol).

Um cenário que pode parecer até irreal, mas que é possível. “Em Espanha há duas vias judiciais em caso de ‘okupação’ ilegal. A via penal e a via civil”, começa por explicar o advogado José Ramón Felipe Condés, responsável pelo escritório de advogados JR Abogados, em declarações ao ECO.

“A via penal está contemplada no artigo 245.2 do Código Penal, que estabelece que ‘quem ocupa, sem a devida autorização, um imóvel, uma habitação ou um edifício alheio que não seja residência, ou permanece nele contra a vontade do proprietário, será punido com uma multa de três a seis meses'”, detalha.

Já a via civil, na Lei 5/2018, tem como objetivo garantir que o proprietário recupera de imediato o imóvel invadido ilegalmente. Para isso, o visado deve apresentar uma queixa no tribunal, provando que se trata de um imóvel em seu nome. Normalmente, a escritura do mesmo serve como prova.

Assim, “o dono pode apresentar uma denúncia na polícia, que iniciará um processo penal, ou pode recorrer diretamente ao tribunal”. Em todo o caso, “apenas um juiz pode devolver a posse de uma habitação ocupada a um proprietário”, salienta o advogado.

E o processo não é assim tão simples. Até porque, para que a polícia possa desalojar os ‘okupas’, o “delito de ‘okupação’ do artigo 245.2 CP deve ser flagrante, ou seja, [os ‘okupas’] têm de ser apanhados com a ‘boca na botija’, arrombando a fechadura ou partido uma janela, por exemplo”, esclarece José Ramón Felipe Condés.

Burocracia da lei deixa proprietários de mãos atadas

Durante o processo — que os donos dos imóveis que se viram confrontados com situações como esta dizem ser demasiado moroso –, o proprietário invadido ou usurpado tem de continuar a pagar as faturas referentes aos serviços básicos, pois a lei não permite privar os ‘okupas’ destes serviços.

“O que os proprietários acabam, muitas vezes, por fazer, é baixar a potência da eletricidade para o mínimo, para que os ‘okupas’ não possam ligar o ar condicionado ou a placa vitrocerâmica”, diz José Ramón Felipe Condés.

Esta foi precisamente uma das primeiras coisas que os advogados disseram a Marta Miguel e à sua família. “É que nem vos passe pela cabeça cancelar os serviços básicos, luz, água e gás. E muito menos tentarem entrar na vossa casa’, disseram-nos logo”, recorda.

O episódio que Marta e a sua família viveram foi há seis anos, mas ainda deixa marcas. “É um tema que continua a provocar-nos muito medo”, admite em conversa com o ECO.

Foi uma das primeiras coisas que os advogados nos disseram: ‘É que nem vos passe pela cabeça cancelar os serviços básicos, luz, água e gás. E muito menos tentarem entrar na vossa casa’.

Marta Miguel

No seu caso, foi a casa dos seus avós, nos arredores de Madrid, que foi ‘okupada’. Marta recorda esses momentos como “muitos duros”. “É um turbilhão de sentimentos. Revolta e irritação, porque aproveitam-se da tua casa e do teu dinheiro”, revela ao ECO.

“Por outro lado, adoras Espanha mas sentes que Espanha não te está a proteger. Impotência, porque não podes sequer entrar na tua casa“, refere Marta, sublinhando ainda o seu desespero, notando que “claro que pensas em fazê-lo inúmeras vezes, mas, se entras, essa pessoa pode ainda denunciar-te. É absurdo.”

O caso de Marta Miguel — que se resolveu num ano com a ajuda de advogados — é, contudo, uma exceção naquela que é a realidade espanhola.

Empresas de desocupação crescem com lentidão da justiça

Segundo os últimos dados do Consejo General del Poder Judicial (CGPJ), as decisões finais dos tribunais para expulsar os ocupantes tardam, em média, 18,1 meses. O que significa que os proprietários que escolhem esta via de resolução têm, muitas vezes, de esperar um ano e meio para recuperarem as suas casas.

Assim, e muitas vezes desesperados, os proprietários acabam por recorrer a quem lhes garante ajuda e resolução mais rápida, muitas vezes as empresas de desalojamento de ‘okupas’.

Estas empresas encontraram um ‘nicho de mercado’ muito lucrativo. Aproveitam-se da lentidão da justiça e apregoam um desalojamento rápido”, considera José Ramón Felipe Condés.

Na internet, uma rápida pesquisa por empresas especializadas neste tipo de serviços origina uma série de anúncios como estes: “Mediação com okupas com 98% de êxito”, “Desocupamos a sua casa no menor tempo possível e com práticas completamente legais” ou “Desalojamos os okupas em apenas 48 horas”.

Estas empresas encontraram um ‘nicho de mercado’ muito lucrativo. Aproveitam-se da lentidão da justiça e apregoam um desalojamento rápido.

José Ramón Felipe Condés

Advogado

Quando contratadas pelos proprietários, uma das primeiras coisas que estas empresas fazem é deslocar-se até ao imóvel para uma tentativa de mediação com os ‘okupas’, na esperança de alcançar um acordo, que, muitas vezes, implica um incentivo monetário, concedido pelos próprios proprietários, para convencer os ‘okupas’ a abandonarem a casa.

Se as partes não chegarem a um acordo, as empresas “baseiam a sua atuação naquilo que se chama ‘controlo de acesso’ ao edifício“, explica ainda o advogado. Esta medida implica a presença, de maneira permanente, de uma ou várias pessoas da empresa à porta da casa em questão, para pressionar os ‘okupas’ e, ao mesmo tempo, controlar quem acede ao imóvel.

Marta Miguel vive com o medo de reviver o pesadelo pelo qual passou há meia dúzia de anos. Na sua casa de férias em Alicante optou por colocar grades em todas as janelas e portas, bem como manter uma câmara de vigilância ligada dia e noite. “Se alguém entrar, a câmara deteta movimento e sou imediatamente avisada através de uma notificação no telemóvel”, conta.

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