Marcelo veta pacote Mais Habitação com duras críticas

  • Ana Petronilho
  • 21 Agosto 2023

A decisão do Presidente da República é política. Diploma é alvo de duras críticas e é devolvido ao Parlamento, onde o PS tem a maioria, podendo vir a sofrer novos ajustes.

Apesar de não ver qualquer norma inconstitucional no pacote legislativo Mais Habitação, o Presidente da República optou por vetar o diploma que partiu do Governo e que foi aprovado pela Assembleia da República. Desta forma, a legislação – que é alvo de duras críticas do Chefe de Estado – é devolvida ao Parlamento, onde o PS tem maioria, podendo vir a sofrer novos ajustes dentro de um mês.

“O Presidente da República devolveu à Assembleia da República, sem promulgação, o Decreto que aprova medidas no âmbito da habitação”, lê-se num comunicado no site da Presidência.

Marcelo escreve uma extensa nota (reproduzida mais abaixo, na íntegra) sobre as razões que o levaram a tomar a decisão do ‘chumbo’. “Logo a 9 de março, me pronunciei sobre os riscos de discurso excessivamente otimista, de expectativas elevadas para o prazo, os meios e a máquina administrativa disponíveis e, portanto, de possível irrealismo nos resultados projetados”, lê-se. E, mesmo com as alterações introduzidas pelo PS no Parlamento, “seis meses depois, o presente diploma, infelizmente, confirma esses riscos”, sublinha o Chefe de Estado, que elenca oito riscos e críticas ao diploma que chegou a Belém.

Além deste diploma, ainda sobre a habitação, o Presidente da República promulgou com reservas um outro decreto da Assembleia da República que autoriza o Governo a simplificar os licenciamentos e os procedimentos urbanísticos e de ordenamento do território. Apesar da luz verde, o Presidente da República “não deixará de ter presente, na futura apreciação do Decreto-Lei autorizado, a necessidade de compatibilização entre a simplificação urbanística e outros valores a preservar, como é a segurança e qualidade das edificações, a responsabilização dos intervenientes no processo de construção e o importante papel da Administração Local em matéria de habitação e de ordenamento do território”.

Na nota, Marcelo Rebelo de Sousa escreve ainda que espera que “o Governo, se possível, aproveite o ensejo para ponderar a reunião num único diploma de toda a legislação dispersa (imensa e, em alguns casos, contraditória), eliminando contradições e normas obsoletas e melhorando a acessibilidade da legislação do setor, num passo fundamental para a desejável simplificação urbanística. Assim, prefigurando algo que aponte para um Código da Edificação”, sublinha.

A decisão de Marcelo – que estava tomada desde quinta-feira – é política. Em declarações à CNN, Marcelo Rebelo de Sousa disse na quinta-feira, no Algarve, que depois de uma análise aos diplomas aprovados na Assembleia da República, com as alterações à versão inicial do vasto diploma (com mais de 80 páginas), não via “qualquer inconstitucionalidade nas medidas, nem mesmo no chamado arrendamento coercivo”.

“Entendo que a questão que se levanta não é uma questão de constitucionalidade entramos agora no período até dia 20 em que vou verdadeiramente focar a atenção na questão política”, disse Marcelo Rebelo de Sousa em declarações à CNN.

Por isso, na quinta-feira, quando terminava o prazo para o envio do diploma para os juízes do Palácio Ratton, o Chefe de Estado – que recebeu o pacote legislativo em Belém no dia 9 deste mês – fez saber que esse cenário estava afastado.

Esta é a 28.ª vez que o Presidente da República usa o poder de veto. Desde que chegou a Belém, Marcelo já vetou 28 diplomas, dos quais cinco incidiram sobre decretos do Governo e 23 sobre legislação da Assembleia da República. Foi em 2018 e 2020 que mais diplomas foram chumbados: seis em cada ano.

O último ‘chumbo’ do Presidente aconteceu no final do mês de julho, com o veto ao diploma do Governo sobre o tempo congelado dos professores.

O pacote legislativo Mais Habitação que sofreu bastantes alterações face aos documentos iniciais foi aprovado pelo Parlamento a 19 de julho, apenas com o voto favorável do PS. PSD, BE, PCP, Iniciativa Liberal e Chega votaram contra. Livre e PAN abstiveram-se.

Antes de chegar ao Parlamento, o vasto diploma de 95 páginas – que mereceu forte contestação dos promotores, dos proprietários, dos inquilinos e do alojamento local – esteve durante três meses em discussão pública, depois de terem sido aprovados e apresentados pelo Governo, de forma faseada, desde 16 de fevereiro. Alguns dos diplomas do pacote Mais Habitação já foram promulgados por Marcelo Rebelo de Sousa, mas este projeto de lei é onde constam a maioria das medidas, com alterações às regras para o alojamento local, para os vistos gold e para o arrendamento coercivo, por exemplo.

De acordo com as normas da Constituição, Marcelo tinha ainda mais 10 dias para decidir se vetava ou promulgava o pacote Mais Habitação.

No entanto, o Presidente quis tomar a decisão antes de viajar para a Polónia para uma visita de Estado entre os dias 20 e 25 de agosto, sendo que segue, posteriormente, para São Tomé para a reunião XIV Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que decorre entre os dias 21 e 27 de agosto.

(Notícia atualizada pela última vez às 11h06)

Leia aqui a mensagem de Marcelo à Assembleia da República:

A Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República,

Dirijo-me a Vossa Excelência nos termos do n.º 1 do Artigo 136.º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República sobre o Decreto n.º 81/XV, que aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas, nos seguintes termos:

1. A emergência da crise habitacional, que afeta, especialmente, jovens e famílias mais vulneráveis, mas começa a atingir as classes médias, bem como a necessidade do aumento da oferta de imóveis para habitação, levaram o Governo, há seis meses, a anunciar um ambicioso Programa Mais Habitação, logo após recriar um Ministério para a Habitação.

Esse Programa integrava significativas medidas de simplificação administrativa, acolhidas noutro diploma da Assembleia da República, que acabei de promulgar.

Mas, sobretudo, aparecia, aos olhos dos Portugueses, centrado em cinco ideias muito fortes:

1.ª – O arrendamento forçado de casas de privados, devolutas, aumentando a oferta de habitação;

2.ª – A limitação ao alojamento local, permitindo, por essa via, também, aumento da oferta de arrendamento acessível;

3.ª – O reforço do papel do Estado na oferta de mais casas, por si e em colaboração com cooperativas, alargando o citado arrendamento acessível;

4.ª – A disponibilização de estímulos públicos aos privados para fazerem aumentar a pretendida oferta;

5.ª – Medidas transitórias, entre as quais as limitações à subida das rendas, durante o período do arranque e consolidação do Programa.

Tudo visando introduzir no mercado da habitação um choque rápido, que acorresse à emergência, fosse visível até 2026 – termo da legislatura –e permitisse travar a vertiginosa subida do custo da habitação, enquanto se esperava que os juros do crédito imobiliário, que oneram um milhão e duzentos mil contratos, cessassem a sua asfixiante subida.

2. A apresentação do Programa Mais Habitação acabou por polarizar o debate em torno de dois temas centrais – o arrendamento forçado e o alojamento local. Os efeitos foram imediatos:

1.º – Apagou outras propostas e medidas e tornou muito difícil um desejável acordo de regime sobre Habitação, fora e dentro da Assembleia da República.

2.º – Deu uma razão – justa ou injusta – para perplexidade e compasso de espera de algum investimento privado, sem o qual qualquer solução global é insuficiente.

3.º – Radicalizou posições no Parlamento, deixando a maioria absoluta quase isolada, atacada, de um lado, de estilo proclamatório, irrealista e, porventura, inconstitucional, por recair, em excesso, sobre a iniciativa privada, e, do outro, de insuficiência e timidez na intervenção do Estado.

Logo a 9 de março, me pronunciei sobre os riscos de discurso excessivamente otimista, de expetativas elevadas para o prazo, os meios e a máquina administrativa disponíveis e, portanto, de possível irrealismo nos resultados projetados.

3. Seis meses depois, o presente diploma, infelizmente, confirma esses riscos.

1.º – Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade direta na construção de habitação.

2.º – O apoio dado a cooperativas ou o uso de edifícios públicos devolutos, ou prédios privados adquiridos ou contratados para arrendamento acessível, implicam uma burocracia lenta e o recurso a entidades assoberbadas com outras tarefas, como o Banco de Fomento, ou sem meios à altura do exigido, como o IHRU.

3.º – O arrendamento forçado fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico, com custo político superior ao benefício social palpável.

4.º – A igual complexidade do regime de alojamento local torna duvidoso que permita alcançar com rapidez os efeitos pretendidos.

5.º – O presente diploma, apesar das correções no arrendamento forçado e no alojamento local, dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento privado, sendo certo que o investimento público e social, nele previsto, é contido e lento.

6.º – Não se vislumbram novas medidas, de efeito imediato, de resposta ao sufoco de muitas famílias em face do peso dos aumentos nos juros e, em inúmeras situações, nas rendas.

7.º – Acordo de regime não existe e, sem mudança de percurso, porventura, não existirá até 2026.

4. Em termos simples, não é fácil de ver de onde virá a prometida oferta de casa para habitação com eficácia e rapidez.

É um exemplo de como um mau arranque de resposta a uma carência que o tempo tornou dramática, crucial e muito urgente pode marcá-la negativamente.

Sem óbvia recuperação política a curto prazo, apesar do labor colocado na junção de várias leis numa e de certas ideias positivas, diluídas pelo essencial das soluções encontradas.

Isto é, tudo somado, nem no arrendamento forçado, nem no alojamento local, nem no envolvimento do Estado, nem no seu apoio às cooperativas, nem nos meios concretos e prazos de atuação, nem na total ausência de acordo de regime ou de mínimo consenso partidário, o presente diploma é suficientemente credível quanto à sua execução a curto prazo, e, por isso, mobilizador para o desafio a enfrentar por todos os seus imprescindíveis protagonistas – públicos, privados, sociais, e, sobretudo, portugueses em geral.

Sei, e todos sabemos, que a maioria absoluta parlamentar pode repetir, em escassas semanas, a aprovação acabada de votar.

Mas, como se compreenderá, não é isso que pode ou deve impedir a expressão de uma funda convicção e de um sereno juízo analítico negativos.

Nestes termos, devolvo, sem promulgação, o Decreto n.º 81/XV, que aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas.

O Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa

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