Medina promete Orçamento sem cativações, mas “o diabo vai estar nos detalhes”
Ministro das Finanças anunciou que o Orçamento do Estado para 2024 será o primeiro em muitos anos a não ter cativações. Mas há mais ferramentas na caixa para Medina controlar a despesa pública.
Fernando Medina prometeu que o Orçamento do Estado (OE) para 2024 “não terá cativações”, mas o ministro das Finanças tem outras formas de chamar a si o controlo da despesa pública. Para a economista Susana Peralta, “o diabo vai estar nos detalhes” e “temos de esperar para ver como é que isto vai ser”.
As cativações são a retenção de uma parte da despesa dos serviços e organismos do Estado, que fica dependente do Ministério das Finanças, permitindo um controlo mais apertado do défice. Entre 2016 e 2023, Mário Centeno, João Leão e Fernando Medina cativaram 3,6 mil milhões de euros de despesa, mas as cativações não são exclusivas dos governos socialistas. Os governos PSD/CDS deixaram 1.950 milhões cativados, incluindo no período da troika.
Mesmo assim, a oposição tem criticado bastante esta tática orçamental. Num de vários artigos de opinião publicados no ECO, no final de julho, o economista Joaquim Miranda Sarmento, que é líder da bancada parlamentar do PSD, chamou-lhes também “farsa orçamental” e “austeridade nos serviços públicos”. E vaticinou que, apesar do fim das cativações anunciado por Medina, “o ministro das Finanças continuará essa política, mesmo que lhe chame outra coisa”.
“Uma boa razão para acabar com as cativações é tentar estimular a despesa pública quando ela, sistematicamente, está abaixo do orçamentado”, defende o economista Paulo Trigo Pereira. Porém, “há várias rubricas no OE que permitem criar uma espécie de almofadas financeiras, quer no Ministério das Finanças, quer nos Ministérios setoriais”, confirma o também ex-deputado.
Este ano, as cativações iniciais corresponderam a 919,9 milhões de euros. Até agosto, o Ministério das Finanças descativou 325 milhões de euros, pelo que continuam cativados 594,5 milhões de euros, de acordo com a última síntese de execução orçamental, divulgada na passada sexta-feira.
Em maio, o Conselho das Finanças Públicas (CFP) publicou o relatório que analisa a evolução orçamental em 2022. O documento permite conhecer melhor alguns desses instrumentos além das cativações.
Há várias rubricas no Orçamento do Estado que permitem criar uma espécie de almofadas financeiras.
Reserva orçamental, uma cativação à cabeça
Um deles é chamado de reserva orçamental e destacamo-lo primeiro, pois, mesmo com o anunciado fim das cativações, a Direção-Geral do Orçamento (DGO) já confirmou, numa circular, que se manterá em vigor em 2024.
A reserva orçamental é uma espécie de cativação à cabeça. Corresponde ao bloqueio de 2,5% do orçamento de despesa de cada programa orçamental da administração central. Em 2022, segundo o CFP, permitiu cativar 400 milhões de euros.
Deste montante foram utilizados 225 milhões, de acordo com dados provisórios, para reforçar os orçamentos da Infraestruturas de Portugal, da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e do Instituto de Gestão Financeira de Equipamentos da Justiça. Todavia, o CFP destaca que este instrumento de controlo orçamental, feitas as contas, deu uma ajuda de 175 milhões para o saldo orçamental das Administrações Públicas em 2022.
Neste ano, no final de agosto, 268,2 milhões de euros estavam inscritos como reserva orçamental, de um total de 322,2 milhões reservados no início do ano. Assim, foram libertados 54 milhões de euros dessa reserva, segundo a síntese de execução orçamental.
Sem conhecer as intenções do Ministério das Finanças em detalhe, Susana Peralta defende que, “em princípio”, esse instrumento “também devia acabar” com o anunciado fim das cativações — é por isso que diz que “o diabo vai estar nos detalhes”. Ainda assim, reconhece que estes instrumentos podem ser o garante de que um determinado programa orçamental não chega a setembro sem dinheiro para pagar as contas.
A professora universitária lembra também que controlar as contas públicas é a responsabilidade do ministro das Finanças e, por isso, “o Ministério das Finanças exerce, e bem, o seu poder de controlo das contas públicas e de afetação dos recursos, que são escassos”. “Ele não vai deixar que toda a gente faça tudo aquilo que quer fazer”, atira a economista, sublinhando: “Esta ideia de acabar com as cativações nunca podia ser interpretada como ‘isto agora é tudo à grande, podemos gastar tudo o que quisermos’. Não pode ser isso, o papel do ministro das Finanças é controlar as despesas dos restantes ministros”.
Esta ideia de acabar com as cativações nunca podia ser interpretada como ‘isto agora é tudo à grande, podemos gastar tudo o que quisermos’.
Dotação provisional, para despesas imprevistas
A dotação provisional é outro dos instrumentos de controlo orçamental. Serve para fazer face a despesas excecionais e imprevistas que surjam ao longo do ano. E cuja utilização, segundo o CFP, “só pode ser autorizada a título excecional pelo Ministério das Finanças”.
Em 2022, a dotação provisional ascendeu a 563,7 milhões de euros, mas toda a verba acabou por ser usada. A fatia de leão foi usada pelo Ministério da Educação para “financiar despesas com pessoal dos estabelecimentos de educação e ensinos básico e secundário”, e também permitiu ao IAPMEI ter meios para pagar às empresas o apoio excecional de compensação pelo aumento do salário mínimo.
Se surgirem imprevistos, são despesa; “se não existirem, é uma margem, uma poupança, que ficará no Ministério”, explica o economista Paulo Trigo Pereira.
As outras ferramentas na caixa
As cativações, a reserva orçamental e a dotação provisional permitem a Medina controlar a despesa pública, mas não são as únicas ferramentas na caixa. Por exemplo, para cumprir uma lei de 2012 que ainda está em vigor, os programas que tenham aumentos dos pagamentos em atraso serão obrigados a constituir uma reserva adicional de receitas de impostos de 50% do valor do aumento verificado nos 12 meses até 30 de junho de 2024.
“Há muitas medidas que dependem da autorização do Ministério das Finanças, porque a tutela do organismo é conjunta com um Ministério setorial, ou por outra razão: há uma série de medidas que necessitam da aprovação do Ministério das Finanças e que, se não têm aprovação, não se pode implementar uma determinada despesa”, acrescenta Paulo Trigo Pereira.
Recorrendo de novo ao CFP, e à análise à evolução orçamental em 2022, o organismo identifica quatro outras dotações centralizadas nas Finanças nesse ano: 400 milhões de euros para despesas imprevistas da pandemia (dos quais foram gastos pouco mais de 86%), 170 milhões para regularização de passivos não financeiros da Administração Central (usada na totalidade), 50 milhões inscritos como Contrapartida Pública Nacional Global (usados em quase 26%) e cinco milhões para o Orçamento Participativo de Portugal, dos quais não foram gastos um único cêntimo.
Feitas as contas, refere o CFP, estas dotações centralizadas nas Finanças corresponderam a 625 milhões de euros, dos quais foram executados 529 milhões de euros.
Orçamentação com “realismo”
A 25 de julho, quando anunciou o fim das cativações em direto na RTP, Fernando Medina explicou, em linhas gerais, a intenção do Governo. “Os Ministérios terão disponíveis as verbas que estão orçamentadas e construídas com o realismo do que é a execução dos anos anteriores”, assinalou.
“Não é inteiramente um orçamento de base zero”, continuou. “Não faz a análise fina de tudo o que está a ser programado, mas retira o poder discricionário da microgestão que o Ministério das Finanças hoje tem sobre um conjunto significativo de verbas”, referiu o ministro, admitindo que as cativações, atualmente, geram alguns “problemas ao nível dos serviços”.
Ou seja, o Ministério das Finanças “vai estar menos presente nas questões que não são tão fundamentais e vai estar mais presente nas questões que são fundamentais, isto é, [mais presente] onde se colocam as grandes questões de eficiência na despesa e também na receita, e menos presente nas questões de gestão”.
Não é inteiramente um orçamento de base zero. Não faz a análise fina de tudo o que está a ser programado, mas retira o poder discricionário da microgestão que o Ministério das Finanças hoje tem sobre um conjunto significativo de verbas.
Ao escutar Medina, vem à memória o caso do ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, que, em 2021, afirmou que no Governo “somos todos Centeno”; mas também o do ex-ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, que, quando reagiu ao pedido de demissão do anterior presidente da CP, Nuno Freitas, se queixou. “É muito difícil gerir uma empresa pública com as regras que nós temos. (…) Isto retira capacidade e autonomia de gestão à empresa, que demora meses para ter uma autorização para comprar umas rodas. Se dependesse de mim estava resolvido”, reiterou.
Questionada sobre se acredita que o “poder discricionário de microgestão” das Finanças vai mesmo terminar, Susana Peralta responde: “Se vai terminar, eu não sei, mas que vai ficar muito, muito, muito, muito limitado, isso parece-me evidente”.
A académica dá o exemplo de um centro hospitalar que tem de substituir um equipamento médico ou adquirir um novo. “São decisões que quem gere aquilo no dia-a-dia é que percebe. Se, por exemplo, um equipamento está a ficar obsoleto ou não está a ficar obsoleto, ou qual é que é a probabilidade de, gastando menos agora para o reparar, ele durar dois anos, em vez de comprar já agora um novo high-tech que, ainda por cima, poupa energia e salva vidas e vai durar dez”, ilustra.
“Quem tem informação para tomar essas decisões de forma razoavelmente informada, embora haja sempre alguma incerteza neste tipo de decisões, são as pessoas nos Ministérios setoriais, não é o Ministério das Finanças”, remata a economista. “Esses trade-offs [compromissos], a DGO não sabe. A DGO não pode perceber dos trade-offs da Saúde,do Ambiente, da Educação, da Justiça. É dar a quem percebe do assunto capacidade para decidir e, desse ponto de vista, o ministro tem toda a razão. É retirar esse poder discricionário que gera má despesa pública”, conclui.
A 10 de outubro, Fernando Medina sairá do Ministério das Finanças em direção à Assembleia da República e entregará a Augusto Santos Silva, a segunda maior figura do Estado, uma pen com a proposta de OE para 2024, que tem aprovação garantida na generalidade pela maioria absoluta socialista. Será o momento de descobrir se o “diabo” das cativações, afinal, se esconde mesmo nos detalhes.
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