Despacho que cortou apoio às rendas já é “legal”. Governo corrigiu diploma

Publicada norma interpretativa que determina que o conceito de rendimento abrange também pensões de alimentos e rendimentos de capitais, uma técnica legislativa "questionável", alertam peritos.

Sete meses depois, o Governo finalmente corrigiu o decreto-lei original que cria o apoio extraordinário às rendas, legalizando o despacho interno das Finanças que mandou apertar as regras na concessão do subsídio, levando à exclusão de famílias ou à redução do apoio. A alteração consta do diploma publicado esta quinta-feira em Diário da República, no mesmo dia em que o Chefe de Estado o promulgou e em que anunciou a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas.

Recorde-se que a norma interna das Finanças definiu que, no apuramento do rendimento dos inquilinos, também deveriam ser considerados rendimentos prediais, de capitais obtidos no exterior, pensões de alimentos e deduções específicas, para além de salários de trabalho dependente, rendimentos a recibos verde ou de reformas.

Como o bolo das retribuições a ter em conta é maior, a taxa de esforço tende a baixar assim como pode ser ultrapassado o limite de rendimentos para a elegibilidade da medida, o que ditava a exclusão de famílias da medida ou a redução do montante do apoio.

Em causa estão o apoio extraordinário, que começou a ser pago este ano, e que pode ir até 200 euros por mês, para inquilinos com taxa de esforço acima de 35%, e um novo subsídio adicional que, no próximo ano, irá cobrir até 4,94% do aumento das rendas de até 6,94% — atualização que decorre da fórmula legal e automática –, de modo a garantir que estas famílias só pagam 2% da subida da prestação.

Para ter direito à medida, os titulares dos contratos de arrendamento não podem ter rendimentos superiores ao 6.º escalão de IRS, ou seja, até 38.632 euros anuais (cerca de 2,760 euros líquidos por mês).

O decreto-lei corrige, com retroativos a 1 de janeiro, o conceito inicial sobre “rendimento para determinação da taxa de IRS”, vertendo na letra de lei o despacho das Finanças, assinado a 31 de maio pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix.

A norma interpretativa das Finanças determina que devem ser considerados não apenas a remuneração líquida mas também remunerações prediais ou de capitais obtidos no exterior bem como a dedução específica, de 4.104 euros ou as contribuições sociais, quando superiores, contrariando o decreto-lei de março, que considera que aqueles ganhos devem ser excluídos, o que reduzia o montante apurado, e, consequentemente, aumentava o valor do apoio às rendas e a abrangência da medida.

Vários fiscalistas, como Luís Leon, co-fundador da ILYA, e João Espanha, sócio fundador da Espanha e Associados, alertaram para a ilegalidade de um despacho interno se sobrepor a um decreto-lei. Por isso, os socialistas e o Executivo apressaram-se a anunciar que iriam alterar o diploma. Mas só agora, sete meses depois do tal despacho, é que o decreto é revisto através de um aditamento que é acrescentado ao diploma.

“O conceito de rendimento anual deve entender-se como incluindo os rendimentos considerados para determinação da taxa geral de IRS aplicável, incluindo as deduções específicas aos rendimentos de IRS considerados para determinação da taxa, bem como os rendimentos considerados para efeitos da aplicação das taxas especiais”, de acordo com o diploma.

E a mudança tem efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2023, data em que entrou em vigor o apoio, o que poderia levantar questões legais ou constitucionais. Mas o Governo escuda-se no facto de tal artigo ter “caráter interpretativo, ficando salvaguardados todos os efeitos já produzidos decorrentes da execução do presente decreto-lei”, segundo o diploma.

Mas, para o fiscalista Luís Leon, “o Governo usou uma técnica legislativa no mínimo questionável para resolver o problema de 2023”. “Criou uma regra interpretativa que, na prática, é uma alteração legislativa com efeitos retroativos à data da publicação original da lei para dar cobertura legal à fórmula de cálculo do apoio às rendas que aplicou em 2023 e que estava num despacho que era claramente contrário ao texto da lei”, explicou ao ECO.

O constitucionalista Jorge Pereira da Silva considera que “não existe risco de inconstitucionalidade porque uma norma interpretativa produz efeitos desde que o diploma entrou em vigor”. “A questão é se se trata de uma falsa norma interpretativa uma vez que deriva de um despacho que não tem força de lei”, destaca.

“Como Portugal é um país com pouca litigância e o apoio é destinado a quem tem menos recursos económicos, não se deve passar nada”, rematou Luís Leon.

Recorde-se que o PS chegou a remeter ao Parlamento uma proposta de alteração para acomodar a lei à norma, no âmbito do debate do pacote Mais Habitação, mas acabou por retirá-la na altura das votações finais, dada a contestação social, devolvendo a batata quente ao Governo de maioria absoluta socialista. Depois, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, disse, em julho, que “o Governo clarificará o que há a clarificar num diploma próprio”. Esse diploma foi publicado esta quinta-feira em Diário da República.

O apoio extraordinário e o subsídio adicional vigoram até 2028 e só se aplicam a contratos de arrendamento assinados até 15 de março de 2023. Pelas contas do Governo, poderão beneficiar desta medida mais de 185 mil famílias.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Despacho que cortou apoio às rendas já é “legal”. Governo corrigiu diploma

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião