Fisco contraria tribunal e insiste que caução das rendas tem de pagar IRS

Finanças alargam ainda a tributação ao IRC, no caso de senhorios que sejam empresas, mesmo depois de uma decisão arbitral ter concluído que o valor está isento, porque não é rendimento predial.

O Fisco contrariou uma decisão do tribunal arbitral e insiste que os senhorios têm de pagar uma taxa de 28% ou 25% de IRS, se for para habitação própria e permanente, sobre a caução de rendas recebidas, mesmo que depois devolvam esse dinheiro ao inquilino. E vem agora alargar o âmbito da tributação ao IRC, caso o senhorio seja uma empresa ou profissional com contabilidade organizada, segundo uma informação vinculativa publicada esta semana no Portal das Finanças.

A caução, estabelecida por qualquer das formas legais previstas, serve para que o locador/senhorio assegure o cumprimento das obrigações decorrentes desse contrato, salvaguardando, quer o pagamento das rendas, quer a reparação de eventuais danos que possam ser causados no imóvel e/ou mobiliário, e constitui, em sede de categoria F do Código do IRS, um rendimento predial“, logo, sujeito a imposto, de acordo com a norma publicada pelas Finanças.

Mas o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) determinou, em outubro do ano passado, que os valores relativos a caução de rendas de imóveis não estão sujeitos a IRS, pelo que julgou “totalmente procedente o pedido arbitral e anular a liquidação adicional de IRS“, no âmbito de um processo que opôs uma empresa agrícola à Autoridade Tributária (AT). O valor em causa era de 181.474 euros.

No entendimento do tribunal, “a caução não é verdadeiramente um rendimento, nem na perspetiva civilista, nem na perspetiva económica, sendo que não se integra verdadeiramente no património do seu beneficiário”, lê-se na decisão a que o ECO teve acesso, assinada pelos árbitros Guilherme d’Oliveira Martins, Francisco Carvalho Furtado e Nuno Maldonado Sousa.

O coletivo concluiu que “não seria permitida a consideração no conceito de rendimentos de realidades que visam apenas a garantia de cumprimento contratual, como é o caso da caução, pelo que o artigo 8.º CIRS só incide sobre as rendas em sentido estrito admitido pelo n.º 1 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa”.

A decisão não foi, contudo unânime, uma vez que Guilherme d’Oliveira Martins votou vencido, isto é, ficou do lado da AT, considerando que a caução deve ser considerada rendimento predial e, como tal, no ano em que o senhorio a recebe, deve ser tributada.

Apesar da posição do CAAD, a AT continua a considerar que as cauções de rendas são rendimentos prediais, logo estão sujeitos a tributação, afirmando, aliás, que “este não é um entendimento inovatório”, invocando, para tal, um ofício de 7 de junho de 2023.

“O Fisco não está obrigado a seguir o entendimento dos tribunais, salvo na situação concreta que foi decidida”, explica ao ECO o fiscalista Luís Leon, co-fundador da consultora Ilya. “O CAAD não é um tribunal superior nem a jurisprudência é constante, pelo que a AT pode manter o seu entendimento, ainda que divergente da situação particular que foi decidida pelo tribunal arbitral”, acrescenta João Espanha, sócio-fundador da consultora Espanha e Associados.

“A informação publicada pela AT apenas espelha aquele que é, desde há muitos anos, o seu entendimento, o qual é expectável que se mantenha inalterado enquanto não se formar uma corrente jurisprudencial uniforme. A decisão do CAAD poderá, contudo, potenciar que outros contribuintes nesta situação recorram a esta via para anular a eventual tributação sofrida sobre as cauções recebidas, o que certamente gerará mais casos de contencioso fiscal entre a AT e os contribuintes”, de acordo com Susana A. Duarte, advogada principal da Abreu Advogados.

Leon e Espanha são mais contundentes e criticam a interpretação do Fisco. “Caução é garantia, não é rendimento. Só no termo do contrato, quando se determina se a caução é ou não usada, se pode aferir se o valor da mesma é ou não rendimento”, defende João Espanha. E, nessa altura, “se o senhorio ficar com a caução e não a usar, a título de indemnização por danos causados pelo inquilino, então deve-se considerar que o valor é rendimento predial e deve ser tributado”, esclarece.

No momento da devolução da caução, a AT considera que o montante em causa deve ser inscrito como despesa. “Isso é uma interpretação criativa, uma originalidade sem sentido e sem apoio nem na letra nem no espírito da lei”, atira Espanha

Leon chama ainda a atenção para “uma injustiça”. “Um senhorio, pessoa singular, que tenha pago 28% de IRS pela caução, no ano em que a devolve se não tiver rendimentos prediais para apresentar não vai poder abater o valor da dita despesa”, revela o fiscalista, acrescentando que “não é possível abater essa despesa a outro tipo de rendimentos como os do trabalho”. “Já uma empresa pode abater o imposto pago em IRC ao conjunto dos rendimentos auferidos naquele ano”, destaca.

Finanças alargam a tributação ao IRC a senhorios que sejam empresas

A instrução da Autoridade Tributária, agora publicada, alarga a tributação da caução de rendas ao IRC, no caso de senhorios que sejam empresas ou profissionais com atividade aberta e contabilidade organizada, alerta o fiscalista João Espanha.

A conclusão da AT vem no seguimento de uma questão, colocada por uma empresa que arrenda um imóvel a outra sociedade coletiva, sobre se deveria fazer retenção na fonte em sede de IRC em relação ao valor da caução.

“Configurando a caução um rendimento predial, tal como definido para efeitos de IRS, sendo o mesmo obtido em território português e o seu devedor um sujeito passivo de IRC, […] fica o respetivo pagamento da caução sujeito a retenção na fonte à taxa de 25%”, conclui a AT.

A norma da AT estabelece ainda que, “sendo a caução uma importância recebida no âmbito de um contrato relativo ‘à cedência do uso do prédio ou de parte dele’, deve a mesma considerar-se como renda, para efeitos fiscais, ao abrigo do n.º 1 e da al. a) do n.º 2 do artigo 8.º do CIRS”.

“Considerando que o ‘rendimento disponibilizado a título de caução traduz-se, efetivamente, num acréscimo de valor ao património de quem cede o uso ou o gozo temporário do bem locado’ […] e, por isso, integrando o conceito de rendimento predial para efeitos de IRS, também o será para efeitos de IRC”, de acordo com o mesmo documento.

Ou seja, “com esta interpretação, o Fisco alarga o pagamento de imposto sobre caução de rendas ao IRC”, no caso de empresas, salienta João Espanha.

Mas quem deve, aos olhos da AT, fazer retenção na fonte? “Quando o inquilino é uma empresa ou tem atividade aberta com contabilidade organizada tem de entregar ao Estado 25% do valor da caução. Se o senhorio for uma empresa, a retenção de 25% é em sede de IRC, no caso de uma pessoa singular a retenção é em sede de IRS”, esclarece Luís Leon.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Fisco contraria tribunal e insiste que caução das rendas tem de pagar IRS

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião