Literacia financeira. Dos três mealheiros às lições da reciclagem

Especialistas descrevem níveis elevados de iliteracia financeira ao longo da vida dos portugueses, com impacto a nível pessoal, na dependência do Estado e na criação de riqueza do próprio país.

Saímos da faculdade a saber o que é o balanço, o passivo e o cash flow, mas não sabemos o que é o salário líquido“. A frase é de Rui Bairrada, chairman do Doutor Finanças, para ilustra o nível de conhecimento financeiro dos portugueses, que continuam mostrar elevados níveis de iliteracia financeira, com impacto na sua vida, na sociedade e na criação de riqueza do próprio país, segundo os especialistas.

Falar de dinheiro ainda é um tabu em Portugal. Perguntar a outra pessoa quanto ganha parece algo impensável. Mas, para Rui Bairrada, este receio de discutir um tema tão importante demonstra o caminho que ainda há a fazer para melhorar o nível de literacia financeira dos portugueses. “O dinheiro é uma recompensa. O dinheiro é uma coisa positiva“, alertou o chairman do Doutor Finanças, numa conferência promovida pela Fundação António Cupertino de Miranda e pela Câmara do Porto dedicada ao tema.

Como explicou o especialista, “o dinheiro serve para concretizarmos os nossos objetivos e sonhos”. E a melhor forma de gerir o orçamento é criar “três mealheiros: um para gastar, outro para poupar e outro para ajudar”. Mas para fazer esta gestão é preciso ter conhecimento. Tal como aconteceu na reciclagem, “os miúdos são a melhor fonte de absorção de conhecimento que vai influenciar as gerações a seguir”. É por aqui que se pode começar a mudar uma realidade na qual Portugal ainda está longe de aparecer bem na fotografia.

As pessoas não sabem o que é líquido nem bruto, quanto é que é para o Estado, quanto é que é para a Segurança Social, quanto é que a empresa paga, quanto é que é o custo para a empresa.

Rui Bairrada

Chairman do Doutor Finanças

As pessoas não sabem o que é líquido nem bruto, quanto é que é para o Estado, quanto é que é para a Segurança Social, quanto é que a empresa paga, quanto é que é o custo para a empresa“, sintetiza Rui Bairrada, contabilizando que dois milhões de pessoas por mês utilizam o site do Doutor Finanças e muitas delas usam ferramentas precisamente para calcular o seu salário líquido.

Ora, completou, “se todos tivermos mais conhecimento de finanças pessoais, vamos depender menos do Estado”. “Vou conseguir gerir a minha vida, em vez de dizer que têm de ser os outros a gerir a nossa vida”, acrescentou Rui Barrada.

A mesma leitura é feita por Inês Odila, country manager da Coverflex, uma start-up de gestão de benefícios flexíveis, que permitem à empresa maximizar a compensação dos colaboradores através de soluções como o cartão de refeição, o cheque infância ou o pagamento de parte do salário através de um PRR. “A maior parte de nós não sabe ler um recibo de vencimento“, anuiu.

A empresária lembra que a compensação é “muito mais” do que o salário. “Vou dar-vos um cenário de uma empresa que paga um salário, dá-me bónus, dá-me dias extra de férias — que correspondem a um determinado valor porque o meu dia tem um determinado valor — dá-me o dia de aniversário dos filhos, licença parental alargada paga pela empresa, permite-me ter uma sabática paga, ou dá-me um budget para saúde mental para poder usar durante o ano”. “Tudo isto é compensação”, sintetiza.

No que concerne a este tema, Inês Odila refere que “ muito pouca literacia sobre como é que se pode tirar melhor partido da compensação“.

Hoje, se disser a uma pessoa com 22 anos que no pacote de compensação dela tem um carro, diz ‘eu não quero carro para nada, o que gastas no carro dá-me no meu salário ou em benefícios’.

Inês Odila

Country manager da Coverflex Portugal

Segundo a mesma especialista, há ainda que considerar importantes mudanças que estão a concretizar-se no mercado laboral. “As empresas hoje têm cinco gerações no mundo do trabalho, quatro predominantes e uma quinta a começar a sair”, que têm diferentes prioridades e estão a obrigar as empresas a ser mais competitivas na forma como compensam os seus colaboradores.

“Hoje, se disser a uma pessoa com 22 anos que no pacote de compensação dela tem um carro, diz ‘eu não quero carro para nada, o que gastas no carro dá-me no meu salário ou em benefícios'”, remata. “Daqui a 10 anos, acredito num modelo onde a empresa vai definir o custo por colaborador” e depois vai-lhe dizer ‘agora tens aqui uma ferramenta para escolheres como é que queres receber’.

Literacia vs ansiedade

Se a literacia mexe com o crescimento, também é verdade que mexe com a saúde mental dos colaboradores. Lourenço Reis, cofundador da Laicos, que no ano passado realizou com o Doutor Finanças um estudo para medir o bem-estar financeiro e os comportamentos, refere que este levantamento mostrou que há comportamentos que vão influenciar o bem-estar financeiro.

“É o caminho para sermos pessoas mais felizes, mais satisfeitas com as nossas vidas”, explica Lourenço Reis, destacando que “pessoas em maior situação de escassez têm emoções negativas“.

O mesmo responsável mostrou ainda alguns dados que revelam uma situação preocupante:

  • 50% dos portugueses têm ansiedade quando pensam na sua situação financeira;
  • 30% não consegue trocar material mobiliário quando está demasiado usado;
  • 20% não consegue aquecer casa.

Números que evidenciam bem a necessidade de ensinar as pessoas sobre a importância das “atitudes que temos sobre importância de poupar ou gastar”.

Em média, uma pessoa em stress financeiro passa seis horas de trabalho por semana preocupada com a sua situação financeira e isto tem custos em termos de produtividade e por cometerem erros no trabalho.

Miguel Ferreira

Responsável pelo Finanças para Todos

Miguel Ferreira, responsável pelo programa Finanças para Todos, criado pela Nova School of Business and Economics, acrescenta que há muitos estudos que chamam a atenção para os custos “muito elevados” de não ter literacia financeira. “Em média, uma pessoa em stress financeiro passa seis horas de trabalho por semana preocupada com a sua situação financeira e isto tem custos em termos de produtividade e por cometerem erros no trabalho..

O responsável adianta que o programa lançado há três anos pela Nova SBE já está a ter um impacto positivo nos conhecimentos financeiros adquiridos, após o programa que tem uma duração de 10 horas e aborda temas como orçamento, reforma, poupança, crédito, gestão de situações endividamento, ou produtos financeiros.

Miguel Ferreira (Finanças para Todos) e Rui Barrada (Doutor Finanças)

Atualmente na 3.ª edição, o programa já chegou a mais de 5.000 pessoas em Lisboa, Porto e via online. Ainda assim, Miguel Ferreira lamenta que, ao contrário do que pretendia, não alcançaram um público com rendimentos mais baixos. “Infelizmente não conseguimos chegar a essas pessoas“, refere.

Outro target que o programa identifica são as pequenas e médias empresas (PME) e os imigrantes, estando a preparar a customização do programa para ser dirigido a essas pessoas. Um deles com uma edição para imigrantes, em português e inglês, adaptado às suas necessidades; e outro direcionado para trabalhadores de PME, um “segmento da população com mais lacunas porque têm um nível de educação e rendimento mais reduzido”.

Mas neste universo empresarial, Miguel Ferreira reconhece que o problema começa, muitas vezes, na gestão. “Ainda há um tecido de PME em que as qualificações dos gestores são relativamente baixas e é um dos problemas ao nível da produtividade“.

Há um défice de conhecimento económico e financeiro, que tem efeitos negativos, desde logo na capacidade de orçamento doméstico.

Rui Moreira

Presidente da Câmara Municipal do Porto

Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, tem sido um promotor da literacia financeira no município. O autarca, que este ano completa o terceiro e último mandato, reconhece que “parte significativa da população [da cidade] não domina conceitos básicos” financeiros. “Há um défice de conhecimento económico e financeiro, que tem efeitos negativos, desde logo na capacidade de orçamento doméstico“, resume.

Para Rui Moreira, “a promoção da literacia financeira deve abranger as novas gerações, mas a infância em geral”, reforçando a importância de implementar estes programas de literacia financeira nas escolas.

Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto

O autarca portuense considera a literacia financeira essencial para ajudar as pessoas a gerir rendimentos, criar hábitos de aforro, evitar situações de sobre-endividamento e tomar boas decisões de investimento. Só assim se vai caminhar para “uma sociedade mais justa, económica e mais próspera”.

“É essencial que as pessoas estejam mais bem preparadas para gerir o seu rendimento”, argumenta, destacando que a “capacidade de proteção social do Estado foi-se exaurindo nas últimas décadas – e para isso muito tem contribuído envelhecimento da sociedade“.

Por um lado, alerta, “os sistemas públicos de saúde virão os seus custos disparar com o aumento da esperança de vida. Ora, esta realidade vai exigir dos contribuintes e utentes uma maior compartilhação dos seus cuidados médicos”. Por outro, a Segurança Social vai ter custos cada vez mais elevados com as pensões, o que vai reduzir os valores das pensões públicas nas próximas décadas. A estimativa é que valor da pensão caia seja metade do último ordenado em 2040.

“A omnipresença do Estado nas nossas vidas tem tendência a esbater-se”, o que vai obrigar a uma maior contribuição dos cidadãos, concluiu.

 

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