Banco Central Europeu acusado de perpetuar pobreza ao ignorar inflação dos “luxos”
A política monetária do BCE está a falhar ao descurar a inflação discricionária, condenando milhões de trabalhadores precários e agravando o ciclo de pobreza na Europa, alertam os especialistas.
Imagine um médico que durante décadas trata a febre de um doente em vez de curar a pneumonia que está justamente a criar essa febre e que realmente o está a matar. É exatamente isto que o Banco Central Europeu (BCE), liderado por Christine Lagarde, tem feito desde 1999, segundo uma investigação que promete abalar os fundamentos da política monetária europeia.
O estudo “A despesa discricionária é o ciclo e porque é que é importante para a política monetária”, conduzido por quatro dos economistas respeitados da City londrina — incluindo Paolo Surico, ex-conselheiro do Banco de Inglaterra –, descobriu algo que vai contra tudo o que os bancos centrais acreditam há décadas. Segundo estes economistas, o BCE e os seus pares estão a combater a inflação errada e, ao fazê-lo, estão a provocar um massacre silencioso entre os trabalhadores mais pobres.
A descoberta é tão perturbadora quanto simples. Segundo os autores deste paper, que será apresentado oficialmente no fórum anual do BCE na próxima semana em Sintra, enquanto o BCE se concentra obsessivamente na inflação geral, deveria estar de olho apenas na inflação dos gastos discricionários, ou seja, nos gastos que os consumidores podem adiar ou cortar quando a vida aperta: restauração, entretenimento, viagens, roupa de marca, bens eletrónicos e atividades de lazer. Segundo os dados apresentados neste estudo, estes gastos representam quase metade de tudo o que os europeus gastam (44% do orçamento das famílias europeias).
[Após um aperto monetário pelo BCE] o consumo discricionário declina notavelmente, atingindo uma contração máxima de aproximadamente 80 pontos base quatro trimestres após um choque de política monetária de um desvio-padrão. Em contraste, o consumo essencial mostra pouca ou nenhuma resposta.
Paulo Surico e os seus colegas mostram que a política monetária assente na taxa de inflação geral faz com que o BCE ao subir as taxas de juro para combater a inflação, os primeiros a sofrer sejam sempre as mesmas atividades: as pessoas deixam de ir ao restaurante, cancelam férias, adiam a compra de roupa nova, etc. As empresas destes setores, que empregam cinco vezes mais trabalhadores vulneráveis do que os setores essenciais, começam a despedir. E estes trabalhadores, que vivem praticamente ao dia, cortam drasticamente todo o seu consumo, criando uma espiral descendente que atinge toda a economia.
Segundo a análise destes economistas, 37% dos trabalhadores de menores rendimentos que trabalham em indústrias discricionárias são classificados como “hand-to-mouth” (vivem ao dia), comparando com apenas 8% nas indústrias essenciais. Quando há crise, é aqui que o desemprego explode primeiro e com mais violência.
É por isso que Paolo Surico e os seus colegas defendem que para “mitigar os efeitos adversos das recessões nos trabalhadores de baixos rendimentos e, assim, estabilizar a procura agregada da zona euro de forma mais eficaz”, será mais eficaz que a política monetária do BCE deva abandonar a orientação com base na taxa de inflação geral e se foque apenas na inflação dos gastos discricionários.
O poder preditivo escondido
A análise dos investigadores tem como amostra um conjunto de dados desde 1999, que revelam padrões claros na resposta dos diferentes setores à política monetária. Após um aperto monetário pelo BCE, “o consumo discricionário declina notavelmente, atingindo uma contração máxima de aproximadamente 80 pontos base quatro trimestres após um choque de política monetária de um desvio-padrão. Em contraste, o consumo essencial mostra pouca ou nenhuma resposta”, referem os investigadores.
Nos mercados financeiros, o padrão repete-se. “Após um choque de política monetária, a resposta imediata dos preços das ações discricionárias é duas vezes maior do que a das ações essenciais”, referem os investigadores. Os dividendos das empresas discricionárias também caem aproximadamente o dobro das empresas de bens essenciais, concluem os autores.
Paradoxalmente, os preços comportam-se de forma inversa. “As respostas de preços nos setores essenciais são notavelmente maiores, caindo cerca do dobro em relação aos preços nos setores discricionários”, revelam os investigadores.
Segundo os investigadores, caso a política monetária do BCE fosse mais focada na inflação discricionária e não na taxa de inflação geral permitiria estabilizar mais eficazmente tanto o emprego quanto o consumo agregado na Zona Euro.
Esta investigação revela também que diferentes indicadores setoriais têm capacidades preditivas distintas para a economia. “A capacidade dos preços agregados para prever a produção na Zona Euro é inteiramente explicada pelo subíndice de preços dos bens e serviços essenciais, enquanto a capacidade da taxa de emprego agregada para prever a inflação pode ser explicada apenas pelo movimento na taxa de emprego das indústrias discricionárias”. Esta descoberta sugere que os bancos centrais poderiam melhorar significativamente as suas previsões económicas prestando mais atenção a estes indicadores setoriais específicos.
A análise da recente crise inflacionista de 2021-2023 oferece dados particularmente valiosos que ajudam a sustentar os argumentos deste paper. Os investigadores concluem que “a maior parte do pico de inflação em 2022 foi impulsionada por mudanças de preços em bens essenciais não-duráveis, como mercearia, combustível e energia, enquanto a maior parte da persistência de 2023-2025 deveu-se principalmente à inflação em serviços discricionários”. Este padrão reforça a tese de que diferentes tipos de inflação requerem respostas políticas distintas.
Com base nestas evidências, os autores desenvolveram um modelo teórico que suporta a ideia de que o BCE deveria “abandonar o targeting da inflação geral e focar-se exclusivamente na inflação dos gastos discricionários”.
A lógica desta conclusão assenta na ideia de que os gastos discricionários são mais sensíveis às taxas de juro e empregam mais trabalhadores vulneráveis e, por isso, caso a política monetária fosse mais focada neste setor permitiria estabilizar mais eficazmente tanto o emprego quanto o consumo agregado. “Ao visar a inflação discricionária, o banco central proporciona às famílias um incentivo para suavizar os seus gastos discricionários; por sua vez, isto melhora os efeitos negativos no emprego dos trabalhadores de baixos recursos nas indústrias discricionárias”, explicam os autores.
Com o BCE a enfrentar desafios desde a gestão da inflação pós-pandémica às pressões demográficas e climáticas, a proposta de Paulo Surico e dos seus colegas oferece uma nova perspetiva sobre como tornar a política monetária mais eficaz e socialmente justa. Os autores reconhecem que a sua proposta representa “uma nova forma de repensar as flutuações do ciclo económico” e que requer uma mudança fundamental na forma como os bancos centrais concebem o seu mandato.
Embora o estudo se foque na Zona Euro, as suas implicações podem estender-se a outras economias desenvolvidas que enfrentam desafios similares de desigualdade e volatilidade económica. Para Portugal, país onde as disparidades de rendimento permanecem significativas, esta abordagem poderia oferecer uma forma mais eficaz de proteger os trabalhadores mais vulneráveis durante os ciclos económicos.
A questão que se coloca é se o BCE estará disposto a considerar uma mudança tão fundamental na sua estratégia, especialmente numa altura em que a estabilidade de preços continua a ser vista como o seu objetivo primordial.
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